Casa Pia: sentença para o “lado errado”
Manuel Raposo — 26 Setembro 2010
Que os agora condenados no caso Casa Pia clamem inocência não admira. O que admira (ou não…) é que toda a comunicação social lhes dê publicidade sem limites. Como que a justificar este alinhamento pelos réus, o director de informação da RTP atreveu-se mesmo a pôr em causa a sentença por não ter produzido, acha ele, uma “certeza serena”! A campanha é tal que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social e a administração da RTP se sentiram na necessidade de vir a terreiro pedir moderação.
De facto, é fácil de perceber que, nesta cruzada, os condenados passaram à condição de vítimas e os jovens abusados voltam a ser sujeitos a toda a espécie de calúnias.
A comunicação social, “livre”, que durante o processo sempre teve especial interesse pelos lados sórdidos da questão e pela intriga partidária que podia explorar (mas muito pouco pelo drama das vítimas e nada sobre o quadro social que o permitiu), faz-se agora eco de uma
tese de “erro judicial”, do interesse exclusivo dos condenados.
Apesar dos argumentos formais de que “todas as partes” são convidadas a pronunciar-se, a parcialidade tem sido evidente, assistindo-se na prática ao uso, em exclusivo e sem restrição, de páginas, microfones e ecrãs dos meios de comunicação pelos condenados. Quanto mais não seja, em resultado do facto conhecido de que tem mais força e influência quem é mais poderoso – e aí os réus levam sempre a melhor sobre os jovens abusados. É mais um dos casos em que a igualdade formal dos cidadãos nada pode contra as desigualdades de base que os distinguem. Bastaria reconhecer isto para colocar no devido lugar os protestos dos condenados. Mas sobre isso não pensa a nossa “democrática” comunicação social.
É evidente o propósito dos condenados: neutralizar ou ganhar as boas graças da opinião pública – que desconhece os meandros do processo e tem uma compreensível desconfiança na Justiça – e criar um ambiente de pressão sobre os juízes do Tribunal da Relação que vai
julgar os recursos. Carlos Cruz, o personagem mais activo da campanha, além de ter ameaçado revelar mais nomes – como quem diz: se não me inocentam eu falo – chegou ao ponto de se fazer paladino de uma “nova Justiça” para Portugal! Toda esta manobra só
tem chegado a milhões de pessoas graças à disponibilidade das televisões e da imprensa.
Independência do poder judicial, Estado de direito, igualdade dos cidadãos perante a lei, e todas as demais declarações de princípios que enchem a boca dos mentores desta nossa sociedade, “democrática e livre” – tudo cai por terra nestas alturas. Para a gente do poder a questão é simplesmente esta: a Justiça tem de funcionar, mas para o “lado certo”; se por acaso funciona, mesmo excepcionalmente, para o “lado errado”, todos os meios servem para corrigir o “lapso”.