Alemanha
O banqueiro terrorista
António Louçã — 24 Setembro 2010
Thilo Sarrazin passou subitamente do quase-anonimato para o estatuto de símbolo político. Sujeito a procedimentos disciplinares no emprego e no partido, suspenso da direcção do Bundesbank e da militância no SPD, as sondagens atribuem-lhe a capacidade de aglutinar, de um dia para o outro, um “partido de protesto” que saísse do nada para obter, imediatamente, votações na ordem dos 20%. Dir-se-ia que existe uma irreprimível simpatia das massas pelo mártir duma “caça às bruxas”. Mas a realidade é outra.
O “caso Sarrazin” e o potencial para o “partido de protesto” são realidades à primeira vista aberrantes num país, a Alemanha, ainda hoje considerado a locomotiva da Europa e confirmado nesse lugar pelos mais recentes indicadores de recuperação económica. De mão dada com a solidez aparente do capitalismo alemão, anda a estabilidade aparente das instituições – as federais e as estaduais, as partidárias e as sindicais.
Mas a história da Alemanha desde a queda do Muro de Berlim tem o seu reverso. Já nos anos 90 os partidos parlamentares se assustaram com o massivo voto de protesto obtido em cidades decisivas (entre elas Hamburgo) pelo “Staatpartei” (o nome do partido não afugentou o eleitorado: uma das suas traduções é “em-vez-de-partido”). Derreteu-se logo, como a neve ao sol, mas nem por isso era menos sintomático duma fragilidade que carcomia o velho establishment partidário.
Depois, veio um fenómeno com mais raízes: Die Linke, o novo partido da esquerda, que se tornou e ainda é hoje um sério concorrente da social-democracia tradicional (SPD). Rapidamente, o SPD tratou de cooptar esse concorrente para governos estaduais, como no Land de Berlim. Todos juntos desmantelaram serviços públicos, cortaram regalias sociais e destruíram postos de trabalho. A impopularidade da política conduzida em nome das esquerdas manteve a chama dos grupos neo-nazis, sempre prontos a semear a sua demagogia no terreno fértil do desespero social.
Nesse governo berlinense, Sarrazin era um dos ministros social-democratas, com o pelouro das Finanças, e saiu dali em Abril de 2009 para a direcção do banco central com a fama e o proveito de ter batido todos os records de desmantelamento do “Estado social”. Mas isso não o inibiu de escrever um livro bombástico com o título “A Alemanha desmantela-se” [Deutschland schafft sich ab].
A tese do livro descreve um país que estupidifica por acolher demasiados imigrantes muçulmanos e por não produzir suficientes crianças alemãs “autênticas” – a estafada tese da “bomba demográfica” islâmica. Para Sarrazin, o islamismo é uma religião que encoraja os seus fiéis ao atraso cultural, à ghettoização e ao parasitismo: “Não tenho de reconhecer alguém que vive do Estado, que recusa esse Estado, que não trata devidamente da educação das suas crianças e que está constantemente a conceber mais miúdas com lenço na cabeça”.
Essa tese vem ao encontro da política do Governo Merkel, que desmantela, ele sim, o “Estado-providência”, e, ao mesmo tempo, culpa pela catástrofe social os beneficiários das últimas migalhas conquistadas no pós-guerra. Como em toda a Europa, e como o seu antecessor social-democrata, o Governo Merkel vive em estado de alerta contra os abusadores reais ou imaginários do subsídio de desemprego ou do rendimento mínimo.
Ao estereótipo do abusador, calha bem acrescentar-lhe o do estrangeiro parasita, que Merkel amplamente cultivou na sua campanha contra o despesismo “dos gregos”. E, se o preconceito xenófobo for temperado com islamofobia, q.b., então é jackpot. Isso nota-se mesmo em críticos de Sarrazin, como o Ministro do Interior, Thomas de Maizière, que calculou em 15% (onde terá ido buscar essa estimativa?) a percentagem dos imigrantes “objectores à integração”. A política do Estado é obrigá-los a fazer “cursos de integração” ou “testes de naturalização”.
Não surpreende, portanto, que Sarrazin tenha durante tanto tempo nadado com a corrente dos partidos institucionais. E, mesmo depois da publicação do seu breviário islamófobo, o banqueiro terrorista não teve só a defendê-lo os energúmenos neo-nazis do NPD no parlamento saxão: teve também um democrata-cristão como Günter Krings ou correligionários social-democratas como o autarca de Hamburgo, Klaus von Dohnanyi, ou o ex-chanceler Helmut Schmidt.
O que poderia surpreender era que um porta-voz tão sensível dos lugares-comuns caserneiros e taberneiros (em alemão: Stammtisch) fosse finalmente ejectado dos seus assentos no banco e no partido. Mas Sarrazin cometeu um erro: além de fustigar o carácter retrógrado e anti-social do islamismo pôs-se, a certa altura, a emitir teorizações pseudo-científicas. E falou na “herança genética” dos judeus (deu também o exemplo dos bascos).
De pouco lhe serviu, depois, a atabalhoada justificação de que apenas se referia a uma herança genética “positiva”. O mal estava feito e a conotação com o nazismo era indisfarçável. O anti-semitismo islamofóbico tinha deixado de fora o seu rabo de anti-semitismo judeofóbico, portanto politicamente incorrecto e doravante não frequentável. Cheios de pena, os seus confrades tiveram de indicar-lhe o caminho da porta.
Porque a “popularidade” de Sarrazin era, antes de mais, um fenómeno palaciano e oligárquico, não um verdadeiro entusiasmo popular por esse demolidor das regalias sociais existentes.