Um estranho silêncio

Manuel Raposo — 16 Agosto 2010

manif25a74.jpgA proposta de revisão constitucional avançada pelo PSD há escassas semanas atrás caiu de súbito no esquecimento, parecendo este apagamento dar razão aos que classificavam a iniciativa de inoportuna. O caso merece contudo uma análise mais detalhada, uma vez que, a nosso ver, o assunto vai voltar de novo para cima da mesa – e nessa altura será a natureza política da proposta, os seus objectivos de base, que importará abordar.
As críticas que choveram sobre o anúncio da revisão avançada por Passos Coelho incidiram sobretudo na desadequação do assunto ao calendário político (“as preocupações dos portugueses e do país estão na resolução da crise”…), criticaram a precipitação da proposta, disseram que o documento foi feito sobre o joelho e que, por junto, resultou num tiro no pé. Tudo isto pode ser verdade, mas a questão política de fundo é outra.

Uma outra aposta

Primeira questão, o PSD viu chegado o momento de colocar em cima da mesa uma outra aposta política: não se trata já de fazer emendas ao quadro político herdado do 25 de Abril, em que nos movemos, mas de o alterar pela base.

As operações avulsas que se sucederam desde há 30 anos (fosse em revisões constitucionais, fosse sobretudo na produção de legislação comum e na actuação dos governos) – no sentido de limitar liberdades, de conferir maior capacidade de acção ao patronato, de alargar poderes das polícias e dos tribunais, de condicionar e esvaziar a actividade dos sindicatos, de cortar as pernas às lutas laborais (a começar nas empresas), etc. – estas operações avulsas são agora dadas por ultrapassadas. O patronato precisa de passar a um novo estádio e sente que chegou a altura de o fazer.

A proposta do PSD (por muito tosca que seja, pouco importa) traduz este propósito das principais forças económicas capitalistas. Do ponto de vista partidário, o PSD quer colocar-se na linha da frente para poder ganhar o apoio do patronato e disputar a primazia que, até há pouco tempo, o PS teve nesse particular. Mas o caso vai muito para além desta simples disputa partidária.
Se nos lembrarmos de posições tomadas pelos sectores do poder ao longo dos últimos anos, e até de expressões utilizadas, perceberemos a consonância da proposta do PSD com esse movimento de fundo impulsionado pelos homens de negócios e pelos seus administradores políticos.

O ataque ao serviço público de saúde, cujos beneficiários são os grandes grupos financeiros, teve por mote a frase lapidar, que fez carreira quando Cavaco Silva era primeiro-ministro e Leonor Beleza ministra da Saúde, “quem quer saúde paga-a”. As revisões da legislação laboral, que sucessivamente facilitaram o despedimento e a sobre-exploração nas empresas, seguiu na linha do anúncio feito nomeadamente pelo empresário Belmiro de Azevedo, secundado por António Guterres, de que “emprego já não é para toda a vida”. O mesmo se poderia dizer para o ensino público, para a segurança social e por aí fora.

Um ataque de âmbito mundial

Segunda questão, o que agora está em causa não é apenas uma revisão da herança de 1974-75. O ataque agora desencadeado (de que o PSD é o protagonista de circunstância) é um ataque de nível europeu e mundial. A crise do capitalismo mundial força as burguesias europeias a procurarem varrer os escolhos que lhes dificultam a competição com as demais potências capitalistas. Entre esses escolhos contam-se os direitos conferidos aos trabalhadores pelo chamado Estado Social e os direitos sindicais. Há pois, neste momento, uma “directiva europeia” não escrita, nem sequer abertamente enunciada, que visa eliminar esses direitos não só nivelando por baixo salários e demais ganhos materiais dos trabalhadores (e a bitola aí é o nível dos salários do terceiro mundo!), como jugulando as organizações de classe.

Reduzir o assunto da revisão constitucional ao ataque às conquistas de Abril seria ignorar a subida desta maré reaccionária em toda a Europa. Com duas consequências políticas imediatas: tratar como um mero “caso nacional” aquilo que é na verdade uma ofensiva internacional com particularidades nacionais; e privar, consequentemente, os trabalhadores portugueses da necessária coordenação com a resistência dos trabalhadores europeus ao mesmo tipo de políticas.

O PS pavimentou o caminho

Terceira questão, a proposta do PSD não é um coelho tirado da cartola nem é de geração espontânea. Foi a política do PS dos últimos anos que lhe preparou o terreno. E essa política, levada a cabo por Sócrates nos tempos mais recentes, é por sua vez resultado de sucessivos “apuramentos”, de passos dados no mesmo sentido. Não é possível encontrar nos governos dos últimos 30 anos sinais de descontinuidade política, quanto mais de ruptura; pelo contrário, o que se vê a olho nu é a perfeita continuidade da actuação dos diversos protagonistas partidários, fossem do PS ou outros. A proposta do PSD é um ponto culminante deste processo.

Ora, isto levanta a questão do real papel do PS na política portuguesa. A aura de esquerda com que a direita e o patronato interessadamente o cobrem – mais do que a aura com que ele próprio se cobre… – leva repetidamente larga parte do eleitorado popular a ver nele uma “alternativa à direita”, ou pelo menos um mal menor.

Mas se há ensinamento a tirar das últimas décadas é o de que uma verdadeira alternativa à direita, que se traduza numa inversão do rumo político, não passa pelo PS e só pode afirmar-se contra o PS. Passa por um movimento de massas, anticapitalista, que não implore uma mudança mas a imponha. É esse movimento que por ora não existe – e é a sua falta que dá margem de manobra à direita.

Na ausência de um tal movimento, as propostas de mudança política situadas dentro dos limites do quadro de forças existente, como as que o BE e o PCP vêm fazendo, acabam assim por ficar prisioneiras do PS, apesar das críticas que lhe dirigem. Acabam por ficar na sua dependência estratégica.
É este círculo vicioso que importa romper pela afirmação de um pólo anticapitalista que congregue as massas trabalhadoras.

Vamos a ver se aprendemos de uma vez por todas

A proposta do PSD teve o condão de gerar no PS uma reacção de defesa, levando-o a arvorar-se, uma vez mais, como paladino do 25 de Abril, do Estado Social e por aí fora. Quando o assunto da revisão constitucional voltar à baila, será bom recordar o palmarés do PS no processo de recuperação capitalista e de ataque ao movimento popular; e mostrar como o seu discurso sobre liberdade, solidariedade e progresso encobre uma cumplicidade permanente com o grande capital e o imperialismo.

A prática de tratar o PS como uma alternativa “menos má” e a esperança de o recuperar para “as forças de esquerda” só têm servido para confundir os campos e paralisar os trabalhadores. O argumento de não hostilizar o seu eleitorado popular não pode impedir-nos de o reconhecer como um partido de direita. Não será pela omissão desta realidade que se ganharão as massas que nele votam, mas pela afirmação de uma via anticapitalista que o desmascare.


Comentários dos leitores

O Raio 20/8/2010, 2:05

O principal argumento do PSD para alterar a Constituição é de que ela é muito ideológica e é necessário limpa-la de toda essa ideologia e simplifica-la. O resto vem como que por arrasto.
Ora a Constituição portuguesa quer no conteúdo ideológico quer na extensão está muito longe da Constituição europeia/Tratado de Lisboa que o PSD aprovou entusiasticamente.
Assim, o problema é a Constituição ser ideológica ou a ideologia não ser a que interessa?


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