Saramago

MV — 10 Julho 2010

saramago_site.jpgJosé Saramago foi um grande escritor e assim permanecerá. Pouco ou nada haverá a dizer contra isso, a não ser por questões de gosto pessoal ou dor de cotovelo.

Mas entre o escritor e o homem político vai uma diferença. As suas posições políticas mais recentes – toleradas pelo PCP certamente à conta da sua posição de intocável – mostram que um grande escritor, ou um grande artista, não é forçosamente um grande político. Os critérios para aquilatar dos méritos do escritor e dos méritos do político são diferentes. A história fornece-nos exemplos de sobra disto mesmo.

Vítor Hugo, defensor dos miseráveis e da república, vituperou a revolução proletária de 1848 alinhando com a direita reaccionária – para mais tarde se tentar redimir procurando a amnistia para os combatentes da Comuna de Paris.
Gustave Flaubert, que reconhecia na massa uma “fecundidade incalculável” – e por isso devia ser “respeitada” – preconizava contudo que ao povo se devia “dar a liberdade, mas não o poder”. Numa carta a George Sand, culpou a instrução primária universal pela irrupção da Comuna, achando por isso mais importante educar os burgueses do que os proletários; e considerava o sufrágio universal “mais estúpido que o direito divino”.
No pequeno burguês apagado que era Fernando Pessoa, observador rigoroso do mundo, morava um fascistóide amante da ordem que viu com esperança a ditadura de Sidónio Pais e o Estado Novo.
Jorge Luís Borges, cujos versos e cuja prosa ninguém poderá diminuir, não se fez rogado às gentilezas do ditador Videla, que fez dele um ícone do regime; nem desdenhou afirmar, no Chile de Pinochet, que “a liberdade conduz a muitos abusos”.

Saramago foi, pelo menos até certa altura, um militante da causa dos proletários. Manteve-se como membro do PCP. Condenou as agressões do imperialismo norte-americano. Permaneceu até ao fim um convicto ateu e anticlerical.
Mas, a par disto, teve intervenções públicas de sentido contrário. Condenou a guerrilha colombiana, indo objectivamente ao jeito da propaganda norte-americana e dos jogos diplomáticos da União Europeia. Não viu que ao apoiar António Costa nas eleições para a Câmara de Lisboa estava a dar alento ao governo Sócrates, já então abominado pelos trabalhadores que se manifestavam pelo país inteiro. E, na mesma linha de “realismo político”, apoiou a candidatura de Zapatero em Espanha, creditando a socialdemocracia como “esquerda”.

As primeiras daquelas posições valeram-lhe o ódio eterno da direita e explicam a boçal ausência de Cavaco Silva das cerimónias fúnebres. Mas não basta o ódio da direita e a aversão dos estúpidos para o definir como comunista e revolucionário. Nisto, o critério tem de ser mais fino.


Comentários dos leitores

Miguel 30/7/2010, 16:12

"No pequeno burguês apagado que era Fernando Pessoa, observador rigoroso do mundo, morava um fascistóide amante da ordem que viu com esperança a ditadura de Sidónio Pais e o Estado Novo."
Está mal informado...Pessoa admirava sidónio e a ordem, sim...mas da mesma maneira em que granjeava sidónio, inversamente odiava salazar chamando-o de tiraninho - "Coitadinho do tiraninho! Não bebe vinho. Nem sequer sozinho… Bebe a verdade e a liberdade, e com tal agrado que já começam a escassear no mercado."
Ser amante da ordem não é a mesma coisa que ser "fascistazoíde", convenhamos...

Luís Vasco 15/8/2010, 20:58

Obrigado Jornal Mudar de Vida, obrigado por dizerem algumas verdades. E eu sendo comunista desse mesmo PCP que o Saramago era, subscrevo essas críticas.
Nestes tempos negros de crise social, apatia e desânimo, fico feliz que haja quem ouse criticar a sacrosanta pequena-burguesia intelectual.
Esta intelectualidade dita progressista que acaricia o povo com a sua misericórdia - a sua peninha - para depois lhe espetar uma faca nas costas, no mínimo, merece que lhe apontem as suas traições. Como a vaidade pode ser venenosa!
Pessoa era um fascitazóide sim senhor, a sua maior inclinação por este ou por aquele ditador fascista não dá para branquear o seu ódio confesso à luta de classes, à revolução, a comunistas, socialistas e anarquistas e à própria classe operária. Isto foi assumido frontalmente pelo Pessoa. Agora há certa pequeno-burguesia que glorifica a obra intelectual acima de qualquer critério moral ou político que procura pintar o Pessoa de progressista.
Mas não adianta, a beleza da sua poesia não apaga a crueldade das suas afirmações. O Pessoa defendeu um regime responsável por incontáveis torturas, perseguições, assassinatos e sofrimentos.
O que a pequeno-burguesia tenta esconder com o branqueamento dos seus artistas (e o Pessoa é ele próprio um ícone pequeno-burguês) é que ela própria, mesmo alguma dita progressista e até radical, odeia o povo e os que lutam por uma revolução proletária.

António Alvão 22/8/2010, 11:17

Parabéns Saramago pelo teu anti-clericalismo militante. Vocês fazem-me lembrar o Vaticano que estiveram à espera que Saramago morresse para o criticarem. Assim não se pode defender, nem tem direito ao contraditório...
Dos "comunistas" que eu conheci e conheço, se calhar foi ele o que se comportou menos mal entre todos os outros? Não precisou de mais ninguém para combater a Igreja (Instituição mentirosa, reacionária, e com um grande caudal de crimes ao longo da sua história), enquanto Jerónimo de Sousa chefiou duas equipas, uma para ir lamber as botas ao Cardeal de Lisboa, a outra para ir lamber as botas ao Arcebispo de Braga.
Compará-lo a Fernando Pessoa, acho que é ir longe demais?
Dizem vocês que: "foi, pelo menos até certa altura, um militante da causa do proletário; condenou a guerrilha colombiana; apoiou António Costa, Zapateiro", etc. Vocês poderiam ter dito, e é bom que o digam ainda, se quiserem, em Saramago defendeu a causa do proletário? Se foi antes do 25 de Abril, se foi na altura do PREC; quando o PC saiu da FUR para tentar entrar num arranjo de governo de PS, PPD e PC; se foi quando o PC apoiou para Presidente da República Ramalho Eanes contra Otelo; se foi quando o PC apoiou Soares por duas vezes para a Presidência da República, ou se foi quando o PC entrou para a Câmara de Lisboa em coligação com o PS?
A guerrilha da Colombia está acima da crítica, mesmo quando fuzilam militantes de base só porque não acertam bem o passo com as diretrizes vindas da cúpula ou quando são vítimas da própria cúpula e não se podem queixar? - Todo o partido e toda a organização política, são o modelo da sociedade que pretendem construir...
Se Mandela fosse um "comunista" puro e duro, quando chegou ao poder, os milhares que ele não teria mandado fuzilar! A vingança é o sentimento dos fracos.
Quando o "revolucionário" viola os direitos humanos, tortura, sequestra, fuzila, etc, deixa de ser revolucionário e passa a monstro!
"O nosso inimigo tem direito à dignidade, por isso, devemos evitar-lhe sofrimento", Kropotkine. - Na minha opinião, Saramago sofria de desgosto do fracasso do chamado socialismo real e por isso deixou de crer no "comunismo" puro e duro do fuzilamento e da bala comum?
Confrontou Cunhal por causa da democracia interna e pela não abertura do partido a outras sensibilidades, etc.
Mais tarde os PC's colocaram-no na lista dos dissidentes, por não alinhar totalmente com as posições do chefe supremo. Depois Saramago "brincou" com isso? E em termos práticos, Saramago já há muito que estava desfiliado do PC; o PC em termos práticos é que nunca se desfiliou de Saramago!
Recusou mexer na crosta das feridas provocadas pelo partido - disse pouco tempo antes de morrer ao Público. A esquerda à esquerda do PS que eu conheci e conheço, todas da área do marxismo, sempre se gladiaram uns aos outros - não só entre partidos como também entre pessoas até do mesmo partido. Depois, há uns que se reclamam da mais pura ideologia marxista/comunista, acusando outros de desvios, disto, daquilo, etc.
Adriano Correia de Oliveira foi vítima deste tipo de gente, empurraram-no para a "morte lenta" (ver Público de 01/11/92 - Cultura, p. 42, encontro da S.P.A. - declarações de vários, inclusive do jornalista Júlio Pinto).
O Zeca não escapou também às provocações, mais propriamente dos grupos maoistas na altura do PREC: Era o doutor, era a Amália de esquerda, etc. Não faço ideia por que é que não gostavam do Zeca? Talvez porque o Zeca numa entrevista que deu a um jornal semanário ter dito:"o que penso não se esgota no marxismo, eu nunca disse a ninguém que era marxista". O Zeca chamava-lhes a extrema esquerda/direita. Alguns dessa área "ideológica", hoje, homenageiam-no, evoluíram, fizeram bem!
Uma coisa é certa - Saramago deixou cá muitos Sousas Laras, espero que não tenha ficado nenhum de esquerda?

António Alvão 23/8/2010, 17:44

Onde está "em Saramago defendeu a causa do proletariado?" deve-se ler "quando é que Saramago defendeu..."

Pedro Goulart 24/8/2010, 12:45

Caro Alvão
Questões prévias
Tenho muitos dos livros escritos por Saramago, li e geralmente gostei.
Cortei com a religião católica e com todas as religiões desde a minha juventude. Mas rapidamente passei de uma posição meramente anti-clerical para uma posição analítica, mais racional, sobre as religiões. E já trabalhei politicamente com cristãos e esquerda, que considero melhores que alguns anti-clericais reaccionários em questões sociais.
Desde algum tempo antes do 25 de Abril de 1974, integrei-me numa corrente política distinta da de Saramago, defensora da organização autónoma do proletariado. E a minha posição veio a aprofundar-se no sentido conselhista, de um comunismo libertário.
Dito isto

Apesar de defender princípios político/sociais claros, procuro não ver o mundo apenas a preto e branco. Assim, considero que Saramago, à sua maneira, se situou durante muitos anos do lado do proletariado. Com vários erros, nomeadamente no PREC. Eu não defendo os meus erros, quanto mais os dos outros! Mas, para mim, não há vacas sagradas.
Nos últimos anos, a par das posições progressistas de Saramago, por exemplo sobre o Iraque e a Palestina ou em relação ao reacionarismo papista, o político também, em minha opinião, assumiu posições nitidamente socialdemocratas, concretamente nos apoios a Zapatero, António Costa ou sobre as situações do País Basco e da Colômbia.
Lamentavelmente, acho que, na defesa intransigente dos erros de Saramago, acabas por confundir as coisas e por defender posições como as daqueles militantes do PCP (e têm sido muitos nos últimos anos) que discordando das posições deste partido, não passam para posições revolucionárias, mas caminham abertamente para posições socialdemocratas e de direita.
Pedro Goulart

António Alvão 3/10/2010, 17:16

Companheiro e amigo Pedro
Não precisas de te justificares ideologicamente de nada porque eu conheço-te bem, o teu livro que li, com gosto, ajudou-me a conhecer-te melhor.
Quando escrevi o texto não estava a pensar em ti. Lamento seres tu a responder-me pelo colectivo e, infelizmente vens dar-me razão ao texto!
Então só por eu dizer que:”se calhar Saramago foi dos comunistas que eu conheci e conheço, o que se portou menos mal?” - A leitura que se faz desta minha citação, é que se portaram todos mal, incluo dissidentes e não dissidentes. Em resposta, afirmas que eu confundo as coisas e acabo por defender as posições sociais – democratas e de direita dos dissidentes do PC. Não há nenhuma verdade que me empurre para essas bandas, quer sejam dissidentes quer não!
As minhas posições político-ideológicas têm chegado às vossas mãos. Eu não defendo ideologias de poder, nem organizações com cúpula.
A minha simpatia por Saramago é só pela sua militância anti-clerical. Chega e basta.
Mas já agora que estamos com as mãos na massa, e como só a verdade é revolucionária, se me permites, observemos o seguinte: um “comunista” que tome posições social-democratas é um erro - de acordo - e um “comunista” que seja ou que tome posições da ortodoxia comunista não é um erro? Mais, nos países ocidentais da social-democracia existem os partidos comunistas, comunistas-trotskystas, anarquistas, libertários, etc. Nos países onde os comunistas estiveram no poder mais de setenta anos e estão hoje ainda, em Cuba, Coreia e China – existe os sociais-democratas, trotskystas, libertários; existe liberdade, socialismo, comunismo, etc? Estas correntes que acabo de citar foram todas abatidas a tiro, fuzilamento, e enterrados em valas comuns muitas delas.
Há cento e muitos anos Bakunine dizia: “ a liberdade sem socialismo, é o privilégio, a injustiça; o socialismo sem liberdade é a escravatura, a brutalidade” - como esta frase se mantém actualizada!
As vítimas mortais de Staline e de outros tais, eram etiquetadas de : sociais-democratas, contra-revolucionários, anti-comunistas, etc. Nunca diziam que era por serem revolucionários, trotskystas, anarquistas, comunistas, etc – eram e são peritos na mentira e na provocação.
Foi no PREC que eu conheci bem a matriz ideológica totalitária do PC, e nesta altura ainda não havia divergências com Saramago. Boicotavam comícios do MRPP com espancamentos; a UDP era a Udepide; todos os grupos maoistas eram a CIA; os trotskystas eram os rachados; outros grupos eram esquerdelhos que andavam a fazer o jogo da direita; pediram a prisão de militantes do PRR(?); apoiaram para P.R. o estratega do 25 de Novembro contra o estratega do 25 de Abril. (Se o PC tomasse o poder com maioria no PREC, havia de ser bonito?)
Para mim, o PC é mais um partido do 25 de Novembro do que do 25 de Abril. Eles como oposição no parlamento burguês, não são de deitar fora. No poder sozinhos com tal matriz ideológica tornar-se-iam perigosos? O PC, como tu sabes, foi fundado por dissidentes anarco-sindicalistas, ainda de tenra idade começaram a bater na mãe, não aceitavam a existência da mãe no movimento sindical; finais dos anos vinte, até 1934, nos 1.ºs de Maio havia batalhas campais entre comunistas e anarquistas.
Amigo Pedro, o erro não está só nos dissidentes tomarem esta ou aquela posição e irem para aqui ou para ali, também está no próprio partido desde a origem! E, dissidentes tiveram desde sempre, uns para a direita, outros para áreas mais revolucionárias, e até também para o movimento libertário.
O comunismo Marxista/leninista/stalinista/maoista, etc, nunca passou do nome, do símbolo, da mentira e da brutalidade. É o antípoda da liberdade, do socialismo, da emancipação dos povos. Quem o aceita, quem o acredita, hoje?
Desculpa o alongamento do texto, umas puxam outras, e perco-me um pouco.
Um abraço,


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