Uma nova onda sectária ameaça o Iraque

Manuel Raposo — 7 Abril 2010

eleicoesiraque_web.jpgAinda não se conhecem os resultados definitivos das eleições iraquianas de 7 de Março, mas conhecem-se já alguns dos efeitos, de certo modo esperados: acesas acusações de fraude e uma vaga de prisões da parte do governo ainda em funções visando os adversários políticos, sobretudo os candidatos sunitas eleitos. A oposição ao primeiro-ministro Al-Maliki acusa-o de usar as forças de segurança para afastar os rivais mais importantes, num esforço para derrotar a coligação oposicionista de Ayad Alawi que tem, pelos resultados conhecidos, uma estreita vantagem de dois deputados. Mas, mais do que esta guerra de seitas, tem interesse ver em que condições decorreram estas eleições e que efeitos podem provocar na atitude dos EUA.

A política de guerra dos EUA teve um único êxito no Iraque: conseguiu destruir o país.
Este dado é incontornável. Os resultados da invasão e da ocupação têm de ser medidos por estes efeitos e não por quaisquer propósitos anunciados. A democratização do Iraque é uma frase inteiramente vazia.

O Iraque não tem um regime político minimamente estável, nem perspectivas disso.
O poder é exercido por um conjunto de grupos sectários, inteiramente corrompidos, que só se sustentam com o roubo de recursos e com o apoio militar dos EUA, por um lado; e por outro lado (ironias da geoestratégia) do Irão, que ganhou protagonismo regional ocupando parte do vazio criado com a destruição pelos EUA do estado iraquiano.

Um quadro legal…ilegal
Foi sobre este pano de fundo que decorreram as últimas eleições no Iraque, as segundas desde a invasão.

Os EUA têm procurado com os actos eleitorais (o primeiro foi em 2005) obter uma espécie de legitimação da invasão. É bom lembrar, quanto a isto, que à luz do direito internacional os ocupantes não podem alterar o regime político e as leis dos países ocupados. Neste sentido, as eleições decorrem num quadro ilegal.

Também é de recordar que a resolução da ONU subsequente à invasão reconheceu o facto da ocupação, mas não legitimou nem a invasão nem a ocupação – o que significa que os EUA permanecem ilegalmente no Iraque. (O anterior secretário-geral da ONU, Kofi Anan, disse aliás, na hora da despedida – quando possivelmente se sentiu mais livre para falar – que a invasão do Iraque pelos EUA tinha sido um acto ilegal, de acordo com o direito internacional.)

Estes aspectos de princípio, embora formais, não podem ser esquecidos. Mas o decorrer das eleições em si também é elucidativo.

Uma lei eleitoral à medida
A lei eleitoral iraquiana é a que Paul Bremer (o procônsul nomeado por Bush) impôs em 2004. Foi feita com a ideia de conduzir os iraquianos a votarem segundo critérios sectários: chiítas, sunitas, curdos votariam nos candidatos das respectivas pertenças religiosas ou étnicas. Esta foi a base do poder tripartido implantado pelo mesmo Bremer em Bagdad: um presidente curdo e dois vice-presidentes, um chiita, outro sunita.
Esta é a matriz. Tudo menos uma representação nacional.

As eleições de 7 Março de 2010 estavam previstas para Janeiro de 2009. Foram sucessivamente adiadas por catorze meses porque os grupos no poder não se entendiam quanto à repartição de forças, e a lei eleitoral foi objecto de alterações – alterações estas disputadas tanto à mesa das negociações como nas ruas à bomba.

A matriz de Bremer manteve-se, mas estiveram em disputa três coisas principais:

Uma, foi o voto dos refugiados que são neste momento perto de 5 milhões dentro e fora do Iraque (sobre uma população total de cerca de 28 milhões e 19 milhões de eleitores). Foi decidido dar aos refugiados a possibilidade de votarem, mas a representação desses eleitores resume-se a 15 lugares no parlamento (num total de 323). Isto é, um deputado por 200 mil eleitores, quando a regra geral é de um deputado por menos de 60 mil eleitores.

Outra, foi a decisão de quem podia e não podia candidatar-se. As forças do próprio poder dividiram-se quanto a isso e procuraram fazer exclusões de parte a parte.
Foi esta uma das principais origens dos atentados bombistas do Verão do ano passado. Tanto os EUA como o Irão intervieram abertamente: os EUA através do vice-presidente Joe Biden e do embaixador em Bagdad; o Irão através do próprio presidente Ahmadinejad. Em resultado, a nova lei reforça o papel das grandes coligações, das coligações de base sectária, constituídas à sombra dos EUA ou do Irão e reflecte ainda mais o peso que estas potências exercem no Iraque.

A terceira foi a integração nas Forças Armadas iraquianas e nos organismos do Estado dos chamados Conselhos Despertar. Os Conselhos Despertar são milícias, principalmente sunitas, que os EUA organizaram, armaram e financiaram, a partir de 2007-2008, sob iniciativa do general David Petraeus. Oficialmente, destinavam-se a combater o “terrorismo” e a Al-Caida; mas, na verdade, visavam fazer frente à Resistência, segundo uma política de contra-insurreição. Actualmente, são uns 100 mil homens armados – que causaram desaires à Resistência, mas cujo papel está em declínio.
A integração desses 100 mil é um novo problema que teve reflexos no processo eleitoral. Em vez da integração completa que, segundo as promessas, já deveria estar feita, apenas menos de metade foi encaixada nas FA e no Estado. Os conflitos gerados levaram o governo a prender muitos desses elementos e este facto foi mais uma fonte de ajustes de contas e de atentados.

Planos de retirada em causa
Esta confusão, em vez de estabilizar o regime, como os EUA pretenderiam, só veio mostrar a fragilidade do poder e a sua dependência da divisão sectária e dos apoios externos.
Isto mostra que, do ponto de vista dos interesses dos EUA, as condições políticas e militares para a retirada de cena não estão criadas. E começaram a ser dados sinais de uma possível revisão dos planos de regresso das tropas anunciados por Obama.

O jornal The New York Times de 22 Fevereiro deste ano (escassos dias antes das eleições, portanto) dava conta desses sinais. Um, provém de fontes militares e diplomáticas dos EUA, que diziam que “a influência dos EUA no Iraque está num plano inclinado”. Outro é este: o general Odierno, comandante em chefe da Forças Armadas dos EUA no Iraque, anunciou um novo plano para atrasar o calendário de retirada das tropas.

A promessa de Obama de retirar do Iraque até 2011, parece, assim, estar em causa. O que quer dizer que, com estas eleições, não foi obtida a estabilidade política mínima que permita aos EUA saírem de cena. Mas isso pode ser uma boa razão para que os norte-americanos voltem a dizer que não há condições para retirarem. Como afirmava o resistente iraquiano Abdul Albayaty, “O processo político posto em marcha pelos EUA só pode reproduzir-se a si mesmo. Os futuros parlamento e governo continuarão tão divididos e paralisados como os anteriores. Isso é bom para os EUA”. E, prevendo uma nova onda sectária, o mesmo Albayaty comenta: “Os EUA, que criaram as condições deste sectarismo, declaram-se neutros, numa atitude de cinismo e de engenharia social criminosa.”


Comentários dos leitores

afonsomanuelgonçalves 8/4/2010, 10:43

DIREITO INTERNACIONAL OU INTERNACIONALISMO?
Salientando esta diferença de conceitos ideológicos à luz do direito, transcrevo em termos sucintos uma declaração política a propósito da Independência da Finlândia: "Há alguns dias, os representantes da Finlândia pediram-nos o imediato reconhecimento da completa independência da Finlândia e a ratificação da sua separação da Rússia". Em resposta o Conselho dos Comissários do Povo deliberou: "Em resposta ao pedido da independência da República Finlandesa apresentada pelo governo Finlandês, o Conselho do Povo de plena conformidade com os princípios do direito das nações à autoderteminação decide apresentar ao Comitê Executivo Central as seguintes propostas: a) - Reconhecer a independência estatal da República Finlandesa, e b) - constituir de acordo com o governo Finlandês uma comissão (composta de representantes das duas partes) para elaborar as providências práticas que a separação da Finlândia da Rússia requer".
Dezembro de 1917


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