“O sistema capitalista está esgotado”

Manuel Vaz — 29 Outubro 2009

nadine1_web.gifEm Janeiro de 2009, Nadine Rosa-Rosso (1) participou em Beirute no Fórum internacional pela resistência, o anti-imperialismo, a solidariedade dos povos e as alternativas. A sua intervenção incidiu sobre o tema, “A esquerda e o apoio à resistência” (2). No mês seguinte, começou a trabalhar na proposta concreta que lançou em Beirute: uma campanha europeia para retirar a organização palestiniana Hamas da lista das “organizações terroristas”, elaborada pelos Estados Unidos e a Europa.
“É a mínima das coisas que podemos fazer se pretendemos apoiar a resistência palestiniana, libanesa e árabe. É a condição democrática mínima para que um apoio à resistência seja possível e que um confronto das diferentes correntes políticas tenha lugar no seio da resistência ao imperialismo. É a condição política indispensável para que a esquerda tenha a mínima possibilidade de se fazer ouvir no seio das massas em luta contra o imperialismo”, defendeu Nadine Rosa-Rosso em Beirute. Assinaram já este apelo, o italiano Giulieto Chiesa, do grupo socialista no parlamento europeu, o francês Henri Alleg e o português José Saramago, dos PC respectivos.

Se muitas vozes denunciaram os massacres da população civil ocorridos durante a última agressão sionista em Gaza, Nadine Rosa-Rosso chama atenção para o facto de que são poucas as vozes que se levantam “para denunciar o objectivo central da operação, isto é, a liquidação do Hamas e a sua implantação no seio da população palestiniana. Uma das causas que pode explicar a ausência de solidariedade prende-se com o facto de esta organização figurar na lista europeia (e norte-americana) das organizações terroristas. Na apresentação do seu relatório ao Conselho da Europa de Novembro 2007, o relator europeu Dick Marty, concluía: “figurar nesta lista equivale a uma condenação à morte” (entrevistado por Nicolas Lalande em Março de 2009, http://elkalam.com).

As 3 perguntas que colocámos a Nadine Rosa-Rosso abordam a questão do Islão e da resistência e as suas incidências políticas na sociedade civil europeia a partir do “caso Gérin”, assunto que analisámos mais aprofundadamente noutro lugar. (3)

1. A pedido do deputado do PC Francês André Gérin, foi constituída uma comissão de inquérito parlamentar para investigar e muito provavelmente proibir o uso da burca. Surpreendem-te as declarações daquele eleito, que considera o uso da burca como “um incómodo, uma rejeição, uma perturbação à ordem pública e um sinal das grandes ameaças que pendem sobre a França e o mundo “branco”, apelando à união sagrada, ao “combate comum esquerda/direita”.

Surpreendida? Sim e não. Sim, porque de acordo com os serviços de informação franceses, apenas 367 mulheres, em França, adoptaram o uso da burca. Poderíamos imaginar que os comunistas franceses teriam “mais para se coçarem” na era Sarkozy. Não, porque este tipo de iniciativa é muito característico da forma como uma parte dos comunistas, e da esquerda em geral, tenta moldar o seu perfil, alinhando com os temas clássicos da extrema-direita e da direita.

A primeira vez que a questão do véu se tornou assunto político em França, foi-o por iniciativa da revista de extrema-direita Minute (Minuto). Apresentava o símbolo da República Francesa – Marianne – com um véu na capa. Foi secundado por um presidente de câmara do RPR (de direita portanto) em 1989 em Creil. E a vaga mediática arrastou praticamente toda a classe política, incluindo a esquerda, no momento da votação da lei de 2004 que proibiu os sinais religiosos ostentatórios. O tema da “Mariana velada”, uma criação da extrema-direita, tornou-se “popular”; Mariana representando a nação e o véu representando a ameaça islâmica.

O que é surpreendente é como a esquerda se empenha em negar a filiação política do assunto do véu. As declarações de Gérin, incluindo o apelo à união sagrada, poderiam também ter figurado na mesma capa de Minute. Mas se o disser, a esquerda escandaliza-se. São factos e talvez fizéssemos melhor se os levássemos a sério. Num quarto de século, o recuo da esquerda em relação a todos os temas que foram lançados pela extrema-direita (imigração, Islão, segurança versus delinquência, etc.) é espectacular.

É simultaneamente a consequência do eleitoralismo do Partido Comunista (nomeadamente a sua vontade de recuperar as vozes operárias perdidas para a Frente Nacional) e da sua total incapacidade em adaptar-se às mutações profundas ocorridas na classe operária durante o mesmo período. As urbanizações onde vivia o eleitorado popular clássico e que formavam os bastiões políticos foram, pouco a pouco, abandonadas por aquelas camadas populares e ocupadas por novas camadas operárias, sobretudo oriundas da imigração.

Tanto os militantes como os eleitos do Partido Comunista não foram capazes de considerar estes recém-chegados como membros de pleno direito da classe operária francesa. E a actual evolução do PC só pode aprofundar este fosso.

2. Nas eleições legislativas de Maio de 2003, o Partido do Trabalho da Bélgica selou, pela primeira vez, uma aliança eleitoral com um grupo muçulmano progressista, o AEL, com implantação na juventude belga oriunda da imigração. Foi a lista Resist em Antuérpia e para o Senado. E foi um flop eleitoral. Que ensinamentos retiras daquela batalha que travaste enquanto secretária-geral do PTB e que terminou na tua expulsão do partido?

Em primeiro lugar, algumas correcções. O AEL (Liga Árabe Europeia) não é uma organização muçulmana, como parece indicar a sua designação, mas antes uma organização de jovens oriundos da imigração magrebina, com uma plataforma anti-racista radical e que defende o nacionalismo árabe. Em segundo lugar, o resultado eleitoral não foi significativamente inferior àquele que tinha habitualmente o PTB em Antuérpia, mas posso dizer que uma parte do eleitorado “natural” belga se afastou e foi substituído por um eleitorado jovem, oriundo da imigração. Em terceiro lugar, a minha expulsão do PTB comportou outros aspectos para além do balanço da lista Resist, ainda que, com efeito, foi nesta questão que a nova direcção do partido centrou a atenção.

Que lições retiro desta batalha no PTB? Perdi-a claramente e, de acordo com a evolução do PTB na sequência da nossa expulsão (não fui a única a ter sido excluída), a grande maioria dos quadros e dos membros do partido enveredaram por uma estratégia muito mais próxima daquela que é seguida pelo PCF do que pela que defendo. E, assim sendo, não tenho, de facto, lugar naquele partido. Enquanto secretária-geral, tinha proposto ao partido em 2002 (na imediata sequência dos atentados de 11 de Setembro e do desencadear da guerra contra o Afeganistão) que nos empenhássemos, no mínimo, cinco anos na construção de uma frente revolucionária, a nível europeu, contra a guerra e pelo socialismo. Propus que combatêssemos em paralelo a guerra conduzida contra os povos e as nações do Terceiro-mundo pela administração norte-americana e os seus aliados europeus e a outra guerra económica e social conduzida contra os trabalhadores da União Europeia.

Também avancei a hipótese de a parte dos trabalhadores oriundos da imigração poder desempenhar um papel decisivo na constituição desta frente. Primeiro porque objectivamente são ainda mais marcados do que os outros pela crise económica e social, pela “americanização” da sociedade por via das directivas europeias, mas também porque, subjectivamente, mantiveram laços com os seus países de origem, e são, portanto, mais sensíveis à questão da justiça e da paz a nível mundial; por outro lado, a vivência quotidiana da discriminação torna-os mais sensíveis às questões da democracia em geral.

Propus esta orientação num congresso em 2002 e todos os congressistas pareciam entusiastas desta perspectiva. O episódio Resist liquidou aparentemente este entusiasmo e preparou os espíritos para uma orientação totalmente oposta. É de lamentar que um partido liquide tão alegremente cerca de trinta anos de empenho revolucionário. Mas isto não impede de modo nenhum aquelas e aqueles que queiram continuar a reflectir e a actuar segundo aquela orientação de o fazer. É aquilo que tento fazer desde há cinco anos a esta parte e só posso constatar que aquela orientação corresponde a uma necessidade real das camadas populares de Bruxelas, onde vivo e milito.

Nas eleições regionais de Junho 2009, constituímos a lista Egalité (Igualdade), que na minha perspectiva corresponde àquela frente de comunistas e de militantes da imigração, em que se encontram numerosos muçulmanos. Na primeira volta obteve 1% dos votos e destacou-se à cabeça de todas as pequenas listas de esquerda e acima da lista muçulmana de Bruxelas. O que demonstra que não é necessário renegar-se para obter resultados eleitorais.

3. Na tua intervenção no Fórum internacional de Beirute concluíste afirmando “estou perfeitamente consciente de que as minhas convicções políticas são minoritárias dentro da esquerda e em particular entre os comunistas europeus. Isto preocupa-me grandemente (…) pelo futuro do ideal comunista”. Temes realmente que a alternativa comunista à sociedade capitalista tenha chegado a um impasse, um impasse irreversível?

A alternativa comunista mantém actualidade e podemos mesmo dizer que muito maior do que quando comecei a militar, no início dos anos 70. A crise económica e financeira do capitalismo, o impasse da guerra no Afeganistão, no Iraque, na Palestina, para dar alguns exemplos, demonstram claramente que este sistema está esgotado, pelo menos do ponto de vista da justiça social, da democracia política e da paz.

O que pretendi criticar em Beirute não é a alternativa comunista mas a recusa da maioria dos comunistas em compreender que o mundo mudou profundamente e que devem adaptar as suas concepções e os seus modos de agir a estas mudanças. E quando falo de adaptação, não falo em retomarem os slogans da extrema-direita e da direita, mas de os combater a troco de uma visão do longo prazo da nossa sociedade em plena mutação. Tomando apenas o exemplo das mudanças fundamentais ocorridas no mundo do trabalho, podemos partir da evidência que a classe operária “clássica”, isto é, aquela que se concentra em grandes complexos industriais e está poderosamente organizada em sindicatos e/ou organizações políticas, encolheu – e tirar daí a conclusão de que é necessário dirigirmo-nos a outras camadas sociais, como os quadros, as profissões liberais, ou seja, às classes médias. Mas podemos tirar também a conclusão de que é necessário continuar a organizar as camadas mais populares da classe operária mais exploradas e mais oprimidas, o que nos conduz naturalmente, na maioria das grandes cidades ocidentais, a trabalhar com as massas populares oriundas da imigração. Trata-se de uma escolha política.

O exemplo de Gérin, de que já falámos, é exemplar. Outro exemplo será o apoio à resistência ao colonialismo e às guerras imperialistas. Nos anos 60-70, era “fácil” aos comunistas ocidentais apoiá-las (ainda que haja muito a dizer sobre a questão, se nos referirmos ao PC belga e ao Congo ou ao PC Francês e à Argélia), porque os movimentos de libertação nacional, como no Vietname ou na América Latina, eram dirigidos por comunistas ou partidos de esquerda. Desde 1989, as coisas mudaram muito no mundo, e se pretendermos continuar a apoiar os movimentos de libertação nacional, já não iremos encontrar comunistas nas posições de comando mas antes partidos ou movimentos de inspiração muçulmana.

Também aqui, é possível fazer a escolha política de insurgir-nos contra o Hamas e o Hezbollah e de apoiar a sua inclusão na lista europeia das organizações terroristas, como faz, na prática, a maioria dos partidos comunistas ocidentais. Podemos fazer também a outra escolha, a de apoiar esta resistência e inclui-la na frente comum das resistências que devemos construir. É o que está a fazer o Chávez na América Latina.

Desta forma, não é a alternativa comunista em si que está num impasse mas antes uma estratégia política seguida pela maior parte do movimento comunista tradicional e pela maioria da esquerda.

Desde que fiz aquela intervenção em Beirute sinto-me menos minoritária porque aquela intervenção foi largamente difundida, traduzida numa dezena de línguas por pessoas que eu não conhecia absolutamente e recebi centenas de reacções entusiastas, incluindo as de comunistas de um pouco por todo o mundo.

(1) Actualmente, Nadine Rosa-Rosso é uma militante comunista independente, professora de francês na área do ensino para adultos. Mas durante 8 anos, de 1995 a 2003, dirigiu, na qualidade de secretária-geral, o PTB – Partido do Trabalho da Bélgica. As origens deste partido remontam aos anos 60, aquando da grande cisão no seio do movimento comunista internacional, entre a maioria pró-soviética e a minoria marxista-leninista. Sob a sua designação actual, o partido foi fundado em 1979 como resultante da fusão de dois grupos, o AMADA (Todo o poder aos operários) e a UC(ml)B (União Comunista – marxista-leninista – da Bélgica).

Nas eleições federais belgas de 2003, o PTB destaca-se pela aliança eleitoral com a Liga Árabe Europeia (AEL) liderada por Diyad Abhu Jahja. PTB e AEL apresentam na região de Flandres uma lista comum denominada, Resist – uma frente revolucionária baseada na luta contra a guerra, pelo socialismo, solidária com os movimentos de resistência contra o imperialismo e que, sobretudo, visa uma dimensão europeia. A fraqueza dos resultados eleitorais obtidos provoca no interior do partido um debate tumultuoso. E, contra o ponto de vista de Nadine Rosa-Rosso, o PTB vai abandonar não só a recente frente criada, Resist, mas igualmente a política de alianças baseadas nos mesmos princípios e objectivos. Nadine Rosa-Rosso e um punhado de outros militantes são excluídos da organização.

(2) De que foram publicados extractos no site e na edição em papel do MV (ver A esquerda e o apoio à resistência anti-imperialista)

(3) Ver o artigo A deriva nacionalista da falsa esquerda


Comentários dos leitores

O Outro Lado da Notícia » Resistência palestina: três perguntas a Nadine Rosa-Rosso 29/10/2009, 17:18

[...] Do site Jornal Mudar de Vida [...]
vermelho.org.br/blogs/outroladodanoticia/2009/10/29/resistencia-palestina-tres-perguntas-a-nadine-rosa-rosso

3 Questions à Nadine Rosa-Rosso | ÉGALITÉ 23/10/2011, 16:17

[...] http://www.jornalmudardevida.net/?p=1787 « Boycott et résistance : Israël et Afrique du Sud Entretien avec Nadine Rosa Rosso par le Comité Action Palestine » [...]


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