Regresso a Marx / Regresso de Marx
A. Poeiras — 7 Agosto 2009
Após a queda do muro de Berlim ter removido o biombo que impedia a crítica aberta dos regimes instalados a leste e de a social-democracia ter entusiasticamente abraçado a herança dos avôs Reagan/Thatcher, seguiu-se a destruição dos sindicatos de base nacional, a incapacidade do movimento operário responder à escala global – não é fácil conciliar os interesses imediatos de um operário europeu com os de um indiano – num refluxo da esquerda tradicional e o surgimento de um produtivo debate que procurava acima de tudo encontrar o acordo entre a esquerda e a própria natureza das coisas, o que conduziu igualmente à procura de formas diferentes de acção política. A chamada “construção europeia”, com toda a trama de golpes e contragolpes, de fintas e simulações e as formas de resistência “selvagem” – dos jovens apedrejadores aos operários sequestradores – é um exemplo magnífico do que sucintamente acima se descreve.
Com a crise actual e a aceleração e radicalização dos protestos, muitos dos velhos marxistas lançaram a palavra de ordem do regresso a Marx, querendo com isso afirmar sobretudo a reimposição de uma leitura da realidade assente no primado da economia e demonstrar as virtudes do poder como fonte de emanação de todo o movimento – precisamente aquilo que mais fortemente vinha sendo posto e cuja crítica mais força ganha com o estrondoso derrocar do ideário neoliberal (mas eles andam aí…).
Não pretendo, naturalmente, negar, para o conhecimento de um determinado acontecimento, a importância do contexto económico em que ocorre mas, antes, afirmar a necessidade de considerar outros elementos, e desde logo a própria natureza humana, para interpretar a realidade e agir sobre ela, tal como para perceber as alterações climáticas e prevenir e combater as suas consequências não basta analisar os efeitos da “pegada humana”: tudo está em movimento e em constante mutação de forma coesa e dinâmica.
Precisamente, algumas das mais importantes crenças do marxismo, a afirmação do primado da economia, a inevitabilidade do comunismo demonstrada pelo “materialismo histórico” e a necessidade de tomar o controlo do aparelho do estado, são sustentadas pela concepção do homem expressa por Marx na sexta tese sobre Feuerbach, tese segundo a qual o homem seria a totalidade das relações sociais, donde bastaria mudar o conjunto das relações sociais para mudar o homem totalmente: bastaria “centralizar todos os instrumentos de produção na mão do Estado” (Marx/Engels, Manifesto do Partido Comunista) para que o fim de todos os antagonismos fosse alcançado, uma vez que a tendência para a competição seria o fruto de uma sociedade marcada pela competitividade (e a tendência para a cooperação de uma sociedade cooperativa). O Estado seria essa fonte das virtudes que se auto extinguiria à medida que se esbateriam os antagonismos de classe e, naturalmente também, entre as nações. A casa socialista constrói-se de cima para baixo, daí que a tomada do poder se transforme no próprio critério da moralidade: toda a acção política tem em vista tomar posse das instituições, não modificá-las, e ela é moral se nos aproxima desse objectivo. Por isso o regime é sem mentira descrito como ditadura e ilusoriamente como do proletariado: o controlo de todas as dimensões da vida social, política e económica cabe ao estado, apresentado como expressão organizada dos trabalhadores (como antes dele o partido), substituindo-os.
Aquela concepção do homem afasta-o da natureza e abre caminho a todas as aberrantes teorias da “educação” da humanidade (campos de reeducação). É parente próxima da ideia de uma mente humana como tábua rasa ou página em branco e quer que toda a vida social, política e intelectual é determinada pela infra-estrutura (o modo de produção), a qual produz um conjunto de relações particulares, determina as instituições políticas e legais da sociedade e, em última análise, a nossa consciência. Como tal, sempre que se modifica a infra-estrutura, modifica-se a natureza humana. Ora, por mais que o modo de produção se tenha modificado, não se modificaram em nós alguns elementos importantes para a tomada de decisões, como é o caso da tendência para a simetria ou para a adesão, no curto prazo, a uma crença pelo facto de ser colectiva: o que parece configurar uma tendência para a ordem e a estabilidade.
O “materialismo histórico”, que descreve o modo de progressão da história da humanidade, afirma que o socialismo se segue, na ordem natural das coisas, ao capitalismo, exigindo, portanto, a realização deste último sem admissão de qualquer outro percurso, uma vez que depende da existência de uma classe operária forte e consciente. Assim se afirma que cada movimento no sentido da realização do capitalismo e da centralização do estado é um passo na direcção do socialismo: por essa razão, Engels considerou positivamente a vitória dos USA sobre o México, Marx viu com bons olhos o efeito do colonialismo inglês na Índia e, mais recentemente, marxistas como António Negri defenderam o chamado Tratado Constitucional Europeu. A questão de fundo é sempre a mesma: o triunfo do capitalismo à escala global favorece a Revolução (com maiúscula, naturalmente).
Esta tese magnífica, que decreta a incompetência revolucionária dos não operários, pode ser encontrada na base da sua proletarização forçada, a qual constituiu um dos momentos negros do socialismo dito real.
É também expressão de uma concepção do socialismo como construção intencional e autónoma das massas organizadas sob a direcção do Partido (com P), quando a maior parte das modificações sociais emerge da soma de uma imensidão de acções individuais e colectivas, algumas sem importância aparente, ocorrendo por todo o lado e que nem sempre tomam o rumo mais interessante para nós. A revolução impossível dos marxistas tem como agente um trabalhador ideal, o Proletário, senhor de uma cultura ideal, a Cultura Proletária, e que realizará um estado ideal, o Estado Proletário.
Para finalizar, se o regresso à leitura de Marx pode, como, de resto, a leitura de qualquer outro filósofo, revelar-se muito produtiva, já o regresso de Marx (do primado da economia, do socialismo imposto a partir da conquista do estado ou da inevitabilidade do comunismo) pode ser muito perigoso para a causa da liberdade.