As crises na era senil do capitalismo
Jorge Beinstein / MV (adaptado de www.rebelion.org) — 17 Abril 2009
A crise actual do capitalismo é mais uma das muitas que o sistema superou na sua história, ou o que está em causa é algo de novo, a ponto de os remédios do passado não servirem? O que está em causa: mais um ciclo de “renovação”, ou a sobrevivência do próprio capitalismo? São estas questões importantes que o artigo (aqui abreviado) do economista argentino Jorge Beinstein aborda. A resposta da parte dos trabalhadores, que é o campo que nos interessa, depende do conhecimento do que se passa diante dos nossos olhos.
Incerteza
Incerteza é a palavra que melhor define o clima psicológico actual. Todos os precedentes capitalistas desta crise mostram-se sem préstimo no momento de entender o que está a acontecer. A imagem da “terra incógnita”,da entrada num território desconhecido vai-se impondo entre as elites das grandes potências.
A ilusão da auto-regulação do mercado financeiro esfumou-se, os gurus da especulação esconderam-se ou mudaram de discurso pedindo ajuda a outros deuses; os da intervenção estatal, precisamente aqueles que, há poucas décadas, tinham sido atirados para o baú dos velhos objectos inúteis.
Mas até agora a nova-velha magia intervencionista demonstrou a mais completa impotência: vários milhões de milhões de dólares, euros e outras moedas fortes (fortes?) foram lançados no mercado em espectaculares operações de salvamento com resultado nulo. O mercado financeiro não se auto-regula nem sequer aceita ser regulado. Uma avalanche de acontecimentos sepultou por completo os prognósticos conservadores dos triunfadores da Guerra-Fria, o futuro já não será mais-do-mesmo.
A crise financeira é gigantesca mas também o são as “outras crises” umas mais visíveis e virulentas que outras convergindo no sentido de conformar um fenómeno inédito.
Por exemplo, a crise energética espera-nos num futuro não muito distante para desencadear novos golpes inflacionários, quando a extracção descer mais uns degraus ou quando a depressão económica se detenha. Por outro lado, a crise energética está associada à crise alimentar e ambas assinalam a existência de um impasse tecnológico geral que se estende ao meio ambiente e ao aparato militar-industrial, tudo isto concentrado e exacerbado a partir do colapso financeiro nos EUA, o centro do mundo. É então possível afirmar que as diversas crises são apenas aspectos de uma única crise, sistémica, do capitalismo como etapa da história humana.
Ciclos
Uma componente importante desta crise psicológica é a constatação de que certos ciclos que pareciam reger o funcionamento económico deixaram de funcionar. Trata-se da destruição da crença de que ao fim de um determinado número de meses ou anos de vacas magras voltaria o tempo das vacas gordas e que o sistema prosseguiria o seu caminho ascendente.
Segundo uma periodização comummente aceite, as fases descendentes desses ciclos económicos durariam em média cerca de 22 anos. Mas no caso presente essa fase descendente já dura há 40 anos (de 1968 a 2008) e não é demasiado ousado prever o seu prolongamento pelo menos por mais um lustro. De acordo com o modelo teórico, a recuperação devia ter começado em meados da década passada, mas isso não ocorreu então e também não aconteceu nesta década.
Pior ainda: cada fase ascendente costuma estar associada a grandes inovações tecnológicas que modificaram os sistemas de produção e os estilos de consumo. Foi assim durante a primeira revolução industrial com a máquina a vapor e a expansão da indústria têxtil; nos meados do século XIX com o aço e o desenvolvimento dos caminhos-de-ferro; no final do século XIX com a electricidade, a química e os motores; e com a electrónica, a petroquímica e os automóveis em meados dos anos 1940, no início do último ciclo ascendente. O mesmo “devia-ter-sucedido” na década de 1990, atravessada por grandes inovações em informática, biotecnologia e novos materiais – no entanto, essas mudanças técnicas não modificaram positivamente o curso dos acontecimentos, pelo contrário, acentuaram as suas piores características.
Por exemplo, a informática: quando avaliamos o seu impacto segundo a importância da actividade económica envolvida verificamos que a sua principal aplicação se deu na área do parasitismo financeiro cujo volume de negócios (uns mil milhões de milhões de dólares) equivale actualmente a umas 19 vezes o produto bruto mundial.
Isto permite-me colocar a hipótese de que podemos actualmente defender que os ciclos económicos largos perderam validade científica – a fase descendente do último destes ciclos foi triturada pela nova realidade: a economia mundial completamente hegemonizada pelo parasitismo financeiro obedece a uma dinâmica radicalmente diferente da que vigorou durante a era do capitalismo industrial.
Senilidade
O fim das rotinas e a chegada de um tempo de desordem geral dão-nos conta de que o mundo burguês não se encontra perante uma doença passageira, mais uma “crise cíclica” dentro do grande ciclo, único e supostamente vigoroso, do capitalismo, mas antes face a uma crise de enorme amplitude em que as doenças se multiplicam não por um capricho do destino mas porque o organismo, o sistema social universal, está muito velho.
O capitalismo mundial entrou na etapa senil nos anos 1970, quando o parasitismo se tornou hegemónico. Ao longo dessa década e do primeiro lustro dos anos 1980 ocorreram factos decisivos nos EUA, entre eles o início do declínio da sua produção petrolífera, a decisão do governo de Nixon de acabar com o padrão dólar-ouro, a derrota no Vietname, a que se juntaram os défices comerciais e fiscais crónicos e a subida incessante das dívidas pública e privada, a concentração de rendimentos, o consumismo, a elitização e degradação do sistema político, etc.
Tudo isto derivou – em começos do século XXI, quando rebentou a bolha bolsista – para uma situação extremamente grave a que o Império respondeu com uma desesperada fuga para a frente: radicalizou a sua estratégia de conquista da Eurásia desenvolvendo grandes operações militares (Iraque, Afeganistão) e reanimou a especulação financeira fazendo inchar a bolha imobiliária, voltando, graças a ela, a fazer inchar a bolha bolsista. Diante da crise do parasitismo financeiro decidiu impulsionar uma onda parasitária muito maior que a anterior. Não se tratou de um “erro estratégico” mas de uma consequência estratégica lógica inscrita na dinâmica dominante do sistema de poder.
Um primeiro indicador de senilidade é a decadência dos EUA em resultado de um longo processo de degradação. A “globalização” desenvolvida desde os anos 1970 implicou um triplo processo: o aburguesamento quase completo do planeta (a cultura do capitalismo tornou-se verdadeiramente universal ao derrotar a URSS e ao integrar a China), a financiarização integral do capitalismo (hegemonia parasitária) e a unipolaridade, instalação do Império norte-americano como poder supremo mundial. Principal consumidor global e área central dos negócios financeiros internacionais, ao que se junta o facto decisivo da “norte-americanização” da cultura das classes dominantes do mundo. É por isso que o declínio (senilidade) dos EUA, para além das suas consequências económicas (ou incluindo as suas consequências económicas) constitui o motor da decadência universal do capitalismo.
O crescimento parasitário dos EUA foi o amortecedor fundamental da crise de sobreprodução crónica das grandes potências, mas agora a bolha imperial desincha e o capitalismo global entra na depressão.
Um segundo indicador de senilidade é a interacção entre os fenómenos: a hipertrofia financeira global e a desaceleração de longo prazo da economia mundial. No começo do século XXI chegámos à financiarização integral do capitalismo, as redes especulativas impuseram a sua “cultura” de curto prazo e depredadora que passou a ser o núcleo central da modernidade. Presenciamos um ciclo vicioso: a crise crónica de sobreprodução iniciada há quatro décadas comprimiu o crescimento económico desviando excedentes financeiros para a especulação cujo ascenso operou como um mega aspirador de fundos sobrantes do investimento produtivo.
A economia mundial cresce cada vez menos e ainda por cima depara com um tecto energético que bloqueia o seu desenvolvimento o que aponta a incapacidade tecnológica do sistema para superar o esgotamento dos recursos naturais não renováveis.
A associação entre a crise energética, a crise alimentar e a crise ambiental põe a descoberto um terceiro indicador de senilidade: o bloqueio tecnológico. É útil o conceito de limite estrutural do sistema tecnológico como o ponto em que o dito sistema é incapaz de aumentar a produção a um ritmo que permita satisfazer as necessidades humanas crescentes. É assim possível formular a hipótese de que o sistema tecnológico do capitalismo estará a chegar ao seu limite superior, a partir do qual deixa de ser o pilar decisivo do desenvolvimento das forças produtivas para se converter na ponta de lança da sua destruição.
Um quarto indicador de senilidade é a degradação estatal-militar posta em evidência pelo fracasso da aventura dos falcões norte-americanos mas que expressa uma realidade global. O estado intervencionista permitiu controlar as crises capitalistas ocorridas desde começos do século XX. O seu ascenso esteve sempre associado ao do militarismo. Mas finalmente o desenvolvimento das forças produtivas universais, até chegar à sua degeneração parasitária-financeira actual, acabou por ultrapassar os seus reguladores estatais submergindo-os na maior das suas crises.
Esta decadência estatal inclui a do militarismo moderno evidenciado pelo atolamento militar do Império no Iraque e do conjunto do Ocidente no Afeganistão. Trata-se de um duplo fenómeno: por um lado, a ineficácia técnica desses super-aparatos militares para ganhar as guerras coloniais e, por outro lado, o seu gigantismo operando como acelerador da crise. O caso norte-americano é exemplar (e sobredeterminante): a hipertrofia bélica aparece como um factor decisivo dos défices fiscais e da corrupção generalizada do Estado.
Um quinto indicador de senilidade é a crise urbana desencadeada na era neoliberal e que se agravará exponencialmente ao ritmo da crise actual. Desde começos dos anos 1980, quando a desocupação e o emprego precário nos países centrais se tornaram crónicos e quando a exclusão e a pobreza urbanas se expandiram na periferia, o crescimento das grandes cidades foi cada vez mais o espelho da degradação das condições de vida das maiorias. A decomposição das cidades é claramente visível na periferia mas não é seu exclusivo: trata-se de um fenómeno global ainda que os primeiros colapsos se dêem no mundo subdesenvolvido, expressões mais agudas de uma onda multiforme irresistível.
A crise de sobreprodução iniciada em finais dos anos 1960 foi amortizada; o sistema continuou a crescer mas na base da expansão da depredação ambiental e do parasitismo, principalmente financeiro, que passou a controlar por completo o conjunto do mundo burguês, inaugurando a era senil do capitalismo.
É neste novo contexto que se foi preparando o grande estoiro que hoje presenciamos cujo detonador foi o colapso financeiro de 2008. A partir daí o capitalismo vai deixando (rapidamente) de ser um sistema velho que cresce cada vez menos e com maiores custos sociais para se tornar numa força destruidora das forças produtivas e do seu contexto ambiental.
Quatro esperas inúteis
Neste contexto de crise sistémica, civilizacional, quero referir quatro esperas inúteis que florescem nos círculos do poder e suas periferias.
A primeira, que sobredetermina as outras, é a da chegada de um novo ciclo de prosperidade produtiva do capitalismo aguardado na década passada e na actual. Ela não poderá chegar porque a estrutura económica que engendrava estes ciclos desapareceu, vítima do parasitismo financeiro.
A segunda refere-se à chegada milagrosa de um novo keynesianismo que, arvorando a espada do intervencionismo estatal, cortaria a cabeça aos malvados especuladores financeiros colocando no centro da cena os bons capitalistas produtivos. O novo herói keynesiano não chegará porque o seu instrumento decisivo, o Estado, é impotente diante da maré financeira e mais ainda perante o oceano da crise sistémica, para mais degradado como está pela grande festa neoliberal. E ainda porque os bons capitalistas produtivos não aparecem – aparecem, sim, os génios da especulação financeira.
A terceira espera inútil é a do renascimento do Império. Depois de quase quatro décadas de decadência, sobrecarregado de dívidas, degradado pelo consumismo, com uma cultura produtiva seriamente deteriorada, não existe nenhum indício sério desse suposto renascimento.
Finalmente, a quarta espera inútil é a de um novo Império capitalista ou uma nova aliança imperial, um novo centro do mundo burguês. A parceria total entre as grandes potências afasta por completo esta expectativa (a dita parceria é resultado de um longo processo de integração que acabou por conformar um sistema global fortemente inter-relacionado).