A última encarnação de Gustave Courbet

Manuel Raposo — 5 Março 2009

gustave-courbet.jpgA história da apreensão, pela PSP de Braga, de meia dúzia de livros com uma capa considerada pornográfica teve duas personagens, ambas ridículas, cada uma a seu modo. Uma é a dos moralistas simples, composta por polícias, padres, chefes de família devotos e por aí fora, para quem sexo e mulheres nuas são pornografia – e pornografia apreende-se, esconde-se, elimina-se. Outra é a dos moralistas “cultos”, aquela gente que se considera instruída, que toma conta dos jornais e televisões, e que argumenta que, sendo a pintura de Courbet “Arte”, então não pode ser pornografia.
Não vale muito a pena falar dos primeiros, porque a crítica que lhes foi dirigida pelos segundos se encarregou de mostrar a boçalidade e o reflexo pidesco da investida da PSP.

Mas sobre a segunda das personagens vale a pena mostrar a limitação do seu ponto de vista, que aparece com a roupagem aparentemente inquestionável de defesa das liberdades.

Desde logo convém dizer que o livro apreendido, contrariamente ao que foi dito, não é de pintura, se intitula “Pornocracia” e utiliza o quadro de Courbet com evidente sentido comercial. Estamos, pois, longe da arte e mais no campo do aproveitamento publicitário.

Depois, não é de somenos lembrar que tanto os moralistas simples como os “cultos” coexistem – apesar das querelas entre si sobre os limites da liberdade de expressão – com essa outra liberdade essencial que consiste em fazer negócio à custa de tudo. Por exemplo, as centenas de anúncios de exploração sexual, basicamente de mulheres, que todos os dias saem nos jornais ditos de referência; ou os anúncios de tele-sexo que a partir de certa hora da noite – em que se supõe que crianças, velhinhos e cristãos estão a dormir – invadem os ecrãs dos canais de TV. Este sistema de exploração industrial do sexo, como o das casas de alterne, e outros, tem direito de cidade porque rende milhares – cabendo portanto no rol das legítimas actividades de livre iniciativa que contribuem para o “tecido económico” do país.

Mas, regressando ao motivo inicial desta crónica: porque é a obra de Courbet, lá por ser “Arte” deixa de ser pornográfica? Ou por ser “pornográfica” deixa de ser arte? O quadro em causa, cabe perfeitamente, sem nenhum escândalo, tanto na classificação de pornografia como de arte. A sua história, e a história do autor, de resto ajudam a percebê-lo.

O quadro, intitulado A Origem do Mundo, foi encomendado a Courbet, em Paris, em 1866, por um diplomata turco que dele fez uso privado. A sua pista perdeu-se desde que foi feito, sabendo-se apenas que mudou de proprietários passando de mão em mão, sempre de forma discreta, até que, já no século XX, ficou na posse de Jacques Lacan, o psicanalista francês. É só depois da morte deste, em 1981, que a família doa o quadro ao estado francês que o expõe desde então no Museu d’Orsay, tornando-se finalmente conhecido do público.

Courbet, nascido em 1819, rompeu com o academismo e o romantismo dominantes na primeira metade do século XIX. Pintou, para grande escândalo dos moralistas – simples ou “cultos” – da época, de forma então dita “realista”, cenas da vida dos camponeses e do mundo do trabalho sem o véu idílico da arte oficial. Na mesma linha, iniciou em 1860 uma série de obras de nus femininos de grande sensualidade que afrontavam a moralidade burguesa da época. São obras que se podem dizer “pornográficas”, destinadas a ferir a visão do mundo e da vida consagrada pelas classes dominantes. A Origem do Mundo faz parte dessa linha de ataque à moral estabelecida. O próprio título coloca o sexo e o prazer na “origem do mundo”, numa época em que, muito mais do que hoje, o criacionismo e a moral cristã davam o sexo e o prazer como a origem dos males do mundo.

Também a figura política de Courbet confere dimensão revolucionária a esta postura artística e intelectual. Gustave Courbet foi marcado pela revolução operária de 1848, tornou-se socialista e admirador de Proudhon. Em 1870, recusou a Legião de Honra com que Napoleão III o quis agraciar. Participou activamente na Comuna de Paris, em 1871, que o elegeu responsável pelos museus de arte. Depois da derrota da insurreição popular, foi preso, julgado e condenado sob a acusação de ter instigado ao derrube da Coluna Vendôme, símbolo do imperialismo napoleónico. Em 1877, o estado francês obrigou-o, tinha Courbet quase 58 anos, a pagar uma nova Coluna Vendôme, no montante de mais de 320 mil francos, em prestações, durante 33 anos.
Exilou-se então e morreu na Suíça em 31 de Dezembro desse ano, um dia antes de ter de pagar a primeira prestação. Foi a sua penúltima transgressão. A última deu-se em Braga.


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