Entrevista com Alan Stoleroff
“Israel não actua em meu nome”
Manuel Raposo — 31 Janeiro 2009
Sociólogo e professor universitário, Alan Stoleroff é cidadão norte-americano e português. Faz parte de uma corrente, ainda minoritária, de judeus que combatem o sionismo e que recusam contribuir para a legitimação da ocupação da Palestina e do papel de Israel no Médio Oriente. “A única esperança de saída para a situação”, afirma, “é o fim da ocupação, a unidade palestiniana, a negociação com todas as forças representativas do Povo Palestiniano e a criação de um Estado Palestiniano”.
Como judeu e cidadão norte-americano como reages à situação que se vive na região?
Em primeiro lugar agradeço a oportunidade de fazer ouvir a minha voz. Acontece que há cada vez mais vozes de Judeus – sobretudo de norte-americanos mas também de europeus – além das habituais como Chomsky, Finkelstein e Falk, a tomarem posições críticas a respeito da ocupação. Há pouco éramos verdadeiramente uma pequena minoria, sobretudo de judeus com posições consequentes e com activismo público contra a ocupação. Éramos rotulados “self-hating Jews” [“judeus auto-odiados”] pela propaganda sionista e pela direita judaica norte-americana. Pode-se ver na Internet a vilipendiação que merecemos destas forças escuras. É uma caracterização que sempre me melindrou e que rejeito. Aliás, faço questão no meu activismo público de identificar-me explicitamente como Judeu para deixar claro que Israel não actua em meu nome e que recuso contribuir para a legitimação da ocupação e do papel de Israel na região. Por outro lado, quero afirmar que a minha postura e oposição frontal à ocupação derivam da minha concepção do que é ser um Judeu a viver correctamente neste mundo pós-Holocausto. As implicações desta afirmação são muitas, mas não quero centrar a conversa sobre esse tema.
Em concreto sobre a situação política…
Respondendo directamente à pergunta, a minha reacção é de repúdio ao rejeicionismo de Israel, isto é, à sua rejeição repetida de todas as oportunidades para obter a sua normalização na região através do fim da ocupação; é de repúdio absoluto dos crimes cometidos sob a ocupação contra o povo palestino. Não só reajo contra Israel enquanto potência bélica e desestabilizadora na região e como bastião do imperialismo em geral na região; considero também que esta estratégia de domínio com base na dissuasão pela força desproporcional é uma estratégia errada para a segurança do Estado de Israel.
A frontalidade da minha posição causa problemas à maior parte dos Judeus norte-americanos que aceitam a narrativa sionista dominante em relação ao estabelecimento do Estado e que culpabilizam os Palestinianos, ignorando e negando o Naqba [“Desastre”, derrota árabe na guerra de 1948] desse povo que tem tantos direitos, senão mais, quanto os Judeus à Terra. Os Judeus em geral têm alguma dificuldade em enquadrar a resistência dos Palestinianos numa perspectiva histórica e só entendem a sua própria justiça. Vejam por exemplo como reagiram à situação em Gaza; só viram os rockets do Hamas, ignorando a miséria que estava a ser exacerbada em Gaza pelo bloqueio e cerco. Temos vindo a alertar todos quanto à guetoização de Gaza ao longo dos últimos anos, mas o mundo não quis saber.
Porquê?
Porque as pessoas em geral dificilmente conseguem relativizar as suas observações do mundo por contextos históricos, sobretudo quando se trata de situações coloniais. Os Israelitas e os Judeus da Diáspora, que não conhecem ou ignoram a história, também ignoram o facto irónico de que os “militantes” de Gaza estavam a lançar rockets para as cidades e aldeias do sul donde os seus avós e pais tinham sido expulsos. Faziam isso como acto de auto-afirmação, como um apelo ao mundo, e se entendiam isso ideologicamente como um acto de resistência e de guerra era uma vingança pelo sofrimento histórico e imediato. Tentar explicar esta perspectiva a Judeus em geral e aos norte-americanos, em particular, é muito difícil e não é aceite. Mas temos que fazer esse esforço, sem medo e sem parar, porque os lobbies sionistas dos EUA são o apoio fundamental para a política criminosa de Israel e esses lobbies dependem do apoio dos Judeus americanos.
De facto, tem havido progresso importante nesse sentido, o qual é evidenciado em parte pela criação de um contra-lobby judaico nos EUA que, apesar do seu sionismo moderado, trabalha para uma política mais racional. Veremos com o tempo qual será o seu efeito e como a antiga equipa de Clinton actuará com a administração de Obama no novo contexto da região.
E como te sentes enquanto cidadão português?
Como cidadão português insisto em actuar no mesmo sentido. O nosso governo tem uma influência importante bilateralmente mas especialmente no contexto da União Europeia, e penso que podemos trabalhar para que o nosso Governo tenha uma política relevante para acabar com a ocupação e resolver o conflito – que precisa de intervenção saudável de fora. Farei tudo o que posso nesse sentido. Portugal é um país pequeno mas pode ter uma enorme influência.
Nas últimas semanas, houve várias posições públicas de judeus contra Israel. Que importância vês nisso?
Tem imensa importância pelas razões que já referi e mais algumas. Israel obtém uma certa legitimação na medida em que haja uma identificação do Estado com o povo Judeu que sofreu o Holocausto. Esta identificação, que é muito forte embora escusada, em conjunto com as tendências anti-árabes e anti-islâmicas dos países europeus (apesar da importância dos trabalhadores imigrantes muçulmanos nas suas economias) e interesses parcialmente alinhados com os norte-americanos para o controlo das fontes do petróleo, faz com que Europa siga uma política que, no fim de contas, favorece Israel, e acaba por ser complacente com a ocupação.
E como avalias as manifestações contra a guerra no interior de Israel?
Avalio muito positivamente as manifestações nas cidades e aldeias árabes. Do meu ponto de vista, um dos fenómenos mais importantes nos últimos tempos é a re-emergência da voz dos “árabes israelitas-palestinianos” dentro do Estado de Israel. As suas manifestações contra a agressão em Gaza, lideradas por Hadash (partido de esquerda juntando Árabes e Judeus) e os partidos e organizações “árabes-palestinas” foram maciças, eficazes, belas e heróicas. A resistência israelita judaica também foi importante, embora de relativa pequena dimensão. A pequena manifestação dos anarquistas à frente de uma base da Força Aérea teve um simbolismo importante bem como, claro, a recusa dos jovens em servirem no exército, o caso dos Shiministim. Foram importantes também as tomadas de posição de alguns jornalistas; destaco Gideon Levy do Há’aretz. Mas, de facto, ainda não foi suficiente. Houve alguma repressão da oposição e, como já disse, a população israelita está notoriamente cega e anestesiada e manipulada. Há grandes riscos na situação porque não são apenas os fascistas do Partido Yisrael Beitonu que consideram os Árabes Israelitas e o movimento israelita pela paz como uma “quinta coluna”. Portanto tanto o movimento pela paz como o povo palestino precisam e exigem a nossa solidariedade.
Como vencer esses riscos?
Neste momento seria muito produtivo se houvesse uma articulação destes protestos dentro de Israel com a resistência nos territórios ocupados. Há dois ou três dias em Hebron houve uma grande manifestação e na altura pensei que seria muito positivo se, na sequência da criminosa agressão a Gaza, houvesse na Cisjordânia uma revolta de massa, de desobediência, sem qualquer recurso a armas, que considero verdadeiramente contra-producente como táctica, mas com o sentido de um confronto com o exército ocupante. Infelizmente a Autoridade Palestiniana não permite isso. Acho a postura da AP um grande erro estratégico que também não a vai beneficiar em posteriores negociações com Israel nem nas suas relações com o Hamas.
Os protestos em Portugal foram escassos para a importância da situação. Como interpretas isto?
Ai, isso é difícil. Oiço os activistas experientes dos vários movimentos contra guerra e o imperialismo dizerem constantemente como é difícil mobilizar os portugueses para acções de solidariedade internacional, sobretudo quando não se sintam implicados na situação, como foi o caso do Timor. É verdade, as manifestações em Portugal foram escassas. Os portugueses sentem-se pouco implicados na situação, e há muitos argumentos eficazes para atenuar a indignação moral das pessoas, mesmo aquelas que de facto conseguiram testemunhar minimamente a atrocidade humana que foi o ataque a Gaza. Quanto muito, foi mais um espectáculo televisivo de barbaridade humana, cujo saco está sempre a reabastecer-se.
O que falta fazer para alterar este estado de coisas?
A situação é complexa. Mesmo amigos meus progressistas recusaram tomar posição, e não entendem o meu empenho enquanto Judeu, tanto porque sobrevive alguma simpatia para com os Judeus que se identificam com Israel, como porque responsabilizam pela situação o Hamas, que consideram um movimento reaccionário islamista fanático que provocou Israel. Não foram convencidos pelos meus argumentos quanto ao bloqueio, quanto às raízes históricas da violência, nem ouviram as minhas revelações quanto ao planeamento deliberado do ataque por Israel, nem as minhas explicações sobre a degeneração da trégua. Só ouviam a demonização do Hamas. Pronto, há alguma lógica nesse raciocínio. Já sabemos o que acontece e pode acontecer quando um movimento islamista reaccionário obtém o poder, e de facto ninguém deveria ter ilusões quanto ao que o Hamas poderá representar. Mas, por um lado, foi o próprio Israel que conduziu o Hamas para a posição onde está agora, pela sua política estúpida durante a primeira Intifada, de que alguns agentes mais inteligentes já se arrependem. Por outro lado, a barbaridade das reacções israelitas, que no pensamento hegemónico militar é vista cínica e funcionalmente como “dissuasão”, só aumentou o ódio contra Israel e dificultou a resolução do conflito.
Que saldo se pode fazer de mais este morticínio?
Israel não atingiu os objectivos quanto ao Hamas, mas acho que os seus verdadeiros objectivos foram semear medo da sua reacção ao “terrorismo”. Uma pacificação obtida desta forma não será duradoura e terá efeitos perversos terríveis. A única esperança de uma saída qualquer do marasmo da situação é o fim da ocupação, a unidade palestiniana, a negociação com todas as forças representativas do Povo Palestiniano e a criação de um Estado Palestiniano.
Acabo dizendo que a nossa solidariedade com a Palestina é mais importante que nunca e nunca deveremos deixar questões secundárias interferir com a nossa unidade nesse esforço.