Keynes ou Marx
Pedro Goulart — 10 Dezembro 2008
Com a amplitude e a profundidade da crise que actualmente assola o sistema capitalista, a maior desde 1929, os nomes de Keynes e Marx têm andado frequentemente na baila. Keynes é referido particularmente por governantes, economistas e jornalistas, que pretendem salvar o actual sistema económico-social. Mas Marx e o marxismo, odiados pela burguesia, ganham hoje nova força sobretudo entre jovens trabalhadores e revolucionários, que rejeitam esta sociedade e procuram uma nova sociedade, liberta de opressão e de todas as formas de exploração do homem pelo homem – a sociedade socialista.
A teoria económica burguesa do século XIX era a do liberalismo económico, do laisser faire. O melhor regulador da actividade económica era o mercado a funcionar sem interferências. O livre funcionamento do mercado daria a trabalhadores e capitalistas a sua justa retribuição. Assim, o sindicalismo seria prejudicial. Segundo esta teoria, um excesso geral de produção não tinha cabimento nem, tão-pouco, um desemprego geral. Depois, viu-se como a teoria estava profundamente errada. E chegámos à crise de sobreprodução iniciada em 1929, com a economia capitalista a entrar em sérias dificuldades, com a produção nos EUA reduzida em um terço e o desemprego atingindo 25% da força de trabalho. O resto do mundo também não ficou imune às graves consequências da crise.
É neste contexto que surge, em 1936, a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de Keynes. Com este livro, o autor não pretende pôr em causa o capitalismo na sua fase imperialista, mas, tão-só, ajudar a resolver os graves problemas com que se debatia o sistema. Algumas das receitas então prescritas por Keynes: 1) uso dos investimentos públicos para aumentar a actividade económica; 2) controlo dos investimentos por parte do estado; 3) uma redistribuição dos rendimentos mais favorável aos grupos de rendimento mais baixo, aumentando a capacidade de consumo popular e mantendo, assim, a procura de mercadorias.
Durante várias décadas, particularmente a partir da Segunda Guerra Mundial, economistas burgueses e dirigentes social-democratas defenderam, ou adoptaram nos seus governos, alguns dos remédios preconizados por Keynes, visando, sobretudo, salvaguardar o sistema. Mas os remédios de Keynes só provisoriamente aguentaram as coisas. Com o passar dos anos, verificou-se que a aplicação desta teoria se transformou num obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas e as classes dominantes intuíram que o recurso ao keynesianismo já não era adequado à obtenção dos elevados lucros e à acumulação de capital pretendida. Surgiram, assim, as condições para que esta teoria económica burguesa, então dominante, fosse substituída por outra.
Na penúltima década do século XX, desenvolveram-se as teorias capitalistas neoliberais, a partir de Hayek e de Milton Friedman. Com estas teorias, o mercado voltou a desempenhar o papel fundamental. Qualquer limitação aos mecanismos de mercado por parte do estado era vista como uma ameaça à liberdade política e económica. Tais teorias conduziram rapidamente a uma concorrência feroz e a um individualismo exacerbado, ao domínio das multinacionais, assim como a uma intensa exploração das classes trabalhadoras e dos povos.
Mas agora, com a catástrofe económico-financeira recente, que afundou as teorias neoliberais, repete-se a história. Os dirigentes das classes dominantes andam às voltas, num círculo vicioso e infernal, sem saberem o que fazer. Sarkosy já fala em refundar o capitalismo. Os mesmos que ontem queriam privatizar tudo, liberalizar, desregular, voltam a lembrar-se de Keynes, assim como a recorrer desesperadamente a alguns dos remédios por ele então preconizados. Injectam milhões e milhões na economia. “Nacionalizam” bancos e seguradoras à beira da falência. Projectam grandes investimentos públicos, visando dinamizar a economia e salvar o sistema. Mas, conhecendo a história e confiando na consciência e na luta dos trabalhadores, este objectivo da burguesia está, a médio/longo prazo, destinado ao fracasso.
Em O Capital (1867), Karl Marx procedeu a uma profunda análise crítica do funcionamento do capitalismo, a partir da luta de classes. Mesmo passados estes anos, o marxismo – método de análise e teoria para a transformação revolucionária da realidade – pode, com os diversos contributos teóricos e práticos, com a experiência (por vezes bastante amarga) que a luta e a vida têm dado às classes trabalhadoras, assumir-se como um factor decisivo na ruptura e superação positiva das profundas contradições com que se debatem as sociedades capitalistas dos nossos dias. Na certeza, porém, que “a libertação dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios trabalhadores”.
Comentários dos leitores
•Manuel Baptista 14/12/2008, 11:56
Marx e a teoria do valor
Marx, no plano da teoria económica está completamente posto em causa, não obstante uma série de ideólogos que insistem em dizer que o marxismo está mais vivo que nunca e que o presente tem vindo a mostrar brilhantemente a validade das teorias marxianas.
Claro que aqueles que proclamam tais «verdades» definitivas e bombásticas não merecem a nossa consideração! Mas os espíritos que esses ideólogos de pacotilha da nossa praça tentam iludir, esses pelo contrário, merecem todo o respeito.
A Teoria do Valor em Marx.
Com efeito, quem estiver familiarizado com o Marx de «O Capital» sabe que parte central das suas teses relativas ao capitalismo se baseia na «teoria do valor». Esta teoria associa o capital ao trabalho, sendo o valor desse mesmo trabalho incorporado na mercadoria, sendo transformado o trabalho «vivo» em trabalho «morto».
O capital, quer seja constituído por mercadorias, por maquinaria, por terrenos, ou por dinheiro seria ao fim e ao cabo um resultante de trabalho acumulado, quer directa, quer indirectamente.
Isto parecia assim nos tempos de Marx. Poderia até ser uma boa aproximação, pois a quantidade de especulação em bolsa não era produtora das enormes massas de capital que existem hoje.
Por muito grandes que fossem, já no tempo de Marx, as operações de especulação, elas não eram senão um fenómeno marginal. O dinheiro guardava uma relação sólida com algo material, o padrão-ouro.
Logo a seguir à 2.ª guerra mundial, aquando da criação dos instrumentos de regulação financeira global que são o FMI e o Banco Mundial, o padrão ouro começou a ser posto em causa. Nixon, em 72, acabou por dar-lhe a machadada final, decretando o fim da convertibilidade dos dólares em ouro.
A partir daqui, e de forma cada vez mais acelerada, deu-se uma desregulação, que levou a que se criasse e avolumasse uma massa monetária, a qual é muito predominantemente «electrónica» (ou seja, são dígitos que estão em contas bancárias).
Com o advento do neo-liberalismo, desapareceram não apenas as barreiras para a circulação de capitais, como também as barreiras para a própria fabricação de dinheiro. Quando um banco concede um empréstimo a um cliente, está a fabricar dinheiro. O banco central que superintende este banco deverá controlar o processo, globalmente, de tal maneira que exista uma garantia de que o banco que empresta tenha efectivamente ido buscar o dinheiro a algum lado. Mas, na prática, não tem sido assim e a massa monetária, com ou sem a conivência dos bancos centrais, tem vindo a avolumar-se.
Esta quantidade de capital financeiro (que não corresponde a verdadeiro valor) atingiu hoje em dia a astronómica quantia de 30 vezes tudo aquilo que exista potencial ou realmente em condições de ser adquirido. Há dinheiro suficiente nos bancos do mundo inteiro para comprar trinta vezes tudo o que nesta Terra seja comprável!
O capital, deixa assim de ter qualquer relação com um valor, com um trabalho incorporado, que ele simbolizaria.
Então, o capitalismo é apenas a manutenção desse dinheiro/valor fictício nas mãos de uns poucos, de cada vez menos aliás, para exercer o poder, vergando aqueles que não tenham acesso a ele. Neste capitalismo, os que controlam os bancos estão no topo da pirâmide de poder.
A abolição do dinheiro, hoje, seria tanto mais realizável, quanto ele está realmente na base de todas as injustiças, violências, opressões.
Manuel Baptista
•Agry White 17/12/2008, 23:30
A amálgama de capital, dinheiro e mercadoria parecem-me redutoras.
Por outro lado, afirmar-se que Marx, no plano da teoria económica está completamente posto em causa é algo que é reclamado, há décadas, pelos economistas neo-liberais “clássicos”.
O capital não trata valor de uso e valor de troca como separados, mas de um modo que subordina radicalmente o primeiro ao último.
Entretanto, surgem pesos pesados como Istvan Mészáros que percorre exaustivamente o Capital de Marx e produz, ao longo de vinte anos, a obra Para Além do Capital.
Este livro, já publicado em diversos países, é uma análise ousada e crítica contra o capital e suas formas de controle social, num momento em que aparecem vários sintomas indiciadores do regresso da utopia marxista tornando possível o impossível como diria Marta Harnechker.
“Expansionista, destrutivo e, no limite, incontrolável, o capital assume cada vez mais a forma de uma crise endémica, crónica e permanente, com a irresolubilidade de sua crise estrutural fazendo emergir, na sua linha de tendência já visível, o espectro da destruição global da humanidade, sendo que a única forma de evitá-la é colocar em pauta a actualidade histórica da alternativa societal socialista. Os episódios ocorridos em 11 de Setembro e seus desdobramentos são exemplares dessa tendência destrutiva” (Mészáros).
Esta síntese de Mészáros, inspirada em Marx, mergulha no passado recente e no nosso presente, oferecendo uma gama de instrumentos de análise para aqueles que estão olhando para o futuro para além do capital.
•mraposo 18/12/2008, 16:02
Ciclicamente, a teoria do valor de Marx é declarada falida. Nada de novo, quanto a isso, no comentário de Manuel Batista: o processo começou logo que O Capital apareceu, já vai para quase 150 anos. Simplesmente, não se vê nada de convincente nos argumentos de MB; pelo contrário, neles próprios se pode ver a inconsistência da sua crítica.
Se MB diz que, hoje, há 30 vezes mais dinheiro do que aquilo que pode ser comprado, e que “o capital financeiro não corresponde a verdadeiro valor”, isso significa que reconhece a existência de um valor real correspondente à riqueza produzida e de um valor fictício correspondente ao montão de capital financeiro em circulação. Ora, o que distingue a primeira dessas parcelas da segunda senão o trabalho humano incorporado no que foi produzido? No caso, de nada interessa que o crédito seja 30, ou 50 ou mil vezes superior à riqueza efectiva existente – interessa a diferença qualitativa entre uma coisa e outra.
Não é, tão pouco, a relação do dinheiro com o padrão-ouro que dá ao dinheiro um valor mais “verdadeiro” ou mais “sólido” – é sim a proporção entre o dinheiro em circulação (moeda ou crédito) e as mercadorias que esse dinheiro se destina a comprar. Se, como refere MB, os bancos centrais têm por missão controlar a emissão de dinheiro, seja qual for a forma que ela assuma, é justamente para tentar evitar que a relação dinheiro/mercadorias atinja uma desproporção desastrosa. Mas, então, tem de se reconhecer que não é o dinheiro que dá valor às mercadorias, e sim o valor destas que dá sentido útil ao dinheiro, como intermediário das trocas. O que determina então o valor das ditas mercadorias? Se não é o dinheiro, se não é o acto de troca – será a parcela de trabalho humano que incorporam no processo de produção.
Portanto, contra o que diz MB, o capital não deixa de ter relação com o valor do trabalho incorporado na produção pelo facto de o crédito aumentar de volume. O crédito apenas aumenta a parcela de capital fictício (aquele que não encontra possibilidade de valorização através da produção). A actual crise é a demonstração prática disso mesmo: chegou aquele momento, no ciclo dos negócios capitalistas, em que o capital fictício (pelo menos parte dele) tem de ser eliminado para permitir novo ciclo de valorização do capital remanescente. É o que está a dar-se pela queda das bolsas, pela desvalorização dos capitais das empresas, etc. Se aquela relação não existisse não haveria limite ao crescimento do crédito e todo o capital se poderia valorizar continuamente e por igual.
Muito mais do que um sistema de “manutenção do dinheiro nas mãos de uns poucos”, como afirma MB, o capitalismo é um sistema de relações sociais. A sua chave é a produção de valor através do trabalho assalariado. O dinheiro existe porque, na base do sistema, existe esta relação mercantil. É, portanto, a relação social capitalista, e não o dinheiro por si, que está na origem das injustiças, violências, opressões de que fala MB. O feitiço que MB atribui ao dinheiro – que lhe daria a capacidade de manter de pé toda a sociedade capitalista – inverte a ordem real das coisas. Na verdade, o sinal de partida para o fim da sociedade capitalista não será a abolição do dinheiro; será, inversamente, a abolição da relação social capitalista a condição para a eliminação das relações mercantis e, portanto, do dinheiro. Porque, lá está, a produção de valor deixará então de ser o sustentáculo da organização social.