A marcha do mundo força os EUA a mudar
Manuel Raposo — 7 Novembro 2008
O mundo está a mudar e por isso os EUA estão a ter que mudar. E por isso também surge, neste momento, o “fenómeno” Obama. Os termos da questão colocam-se, portanto, exactamente ao contrário do que fazem os comentadores superficiais quando falam dos efeitos do sucesso eleitoral de Barack Obama. Não é a mudança na “América” que vai mudar o mundo, é a mudança no mundo que está a forçar a “América” a mudar.
Depois de, nas duas décadas recentes, os EUA terem dominado o planeta aparentemente sem competidores, os grandes centros capitalistas surgem abertamente a questionar a hegemonia norte-americana. Não só o Japão e a União Europeia, como há uns anos atrás (mesmo de forma vacilante), mas também agora uma China que inunda o mundo de bens de consumo, ou uma Rússia reunificada e reabilitada (até do ponto de vista militar). E ainda – precisamente porque a competição entre os grandes proporciona aos demais espaço de manobra – a Venezuela, a Bolívia, o Irão, a Índia, o Brasil, a República Sul Africana, que procuram afirmar vias próprias de desenvolvimento capitalista.
A capacidade dos EUA de mandarem no mundo entrou, pois, em declínio visível, com a particularidade de a presente crise global dos negócios vir pôr a nu a fraqueza endémica do capitalismo norte-americano.
Duas frentes de guerra perdidas, decadência económica patente, competidores a disputar abertamente os terrenos de caça dos EUA – são os factores que levam uma parte da classe dominante norte-americana a farejar a inevitabilidade de uma adaptação às novas condições.
Obama acabou por se afirmar como a melhor aposta para essa adaptação. A sua candidatura não surgiu de um movimento de base popular que o impusesse, mas ganhou vastos apoios que exprimem o descontentamento das massas (particularmente entre os negros e os jovens) e que a tornaram imbatível. Diante do desgaste da guerra, do abandono a que foram votadas as vítimas do Katrina, da penalização da crise económica, a vontade de mudar agitou os norte-americanos das classes mais baixas. Mas este facto, precisamente, reforçou na camada dirigente norte-americana a necessidade de tornar Obama de potencial “candidato do povo” em eficaz candidato do regime – de um regime que teve de se afirmar, perante as circunstâncias, em “renovação”.
Os riscos da campanha de Obama não residiam no seu programa nem nos seus propósitos, que afirmavam o essencial da linha seguida pelo imperialismo norte-americano – residiam na possibilidade de dar corpo a uma onda de massas e de, por essa via, levar a população a crer que o seu futuro poderia depender da sua própria iniciativa, por muito limitados que fossem os resultados.
Os apoios a Obama de republicanos de peso como Colin Powell ou Francis Fukuyama, ou de órgãos de imprensa conservadores, ou a afirmação assassina de Karl Rove (o chefe das campanhas eleitorais de George Bush), feita na véspera do escrutínio, de que Barack Obama iria “arrasar” McCain – têm de ser entendidos como uma forma de a direita norte-americana absorver Obama, de o chamar a si, de o rodear, de lhe retirar o potencial “subversivo” que poderia assumir se ele fosse um vencedor apenas apoiado pela vontade de mudança das massas. Com tais apoios, a vitória de Obama tornou-se um eco da vontade de mudança das massas entrelaçado com o eco da vontade de “mudança” das classes dominantes. Ou seja, foi neutralizada enquanto eventual contestação do regime.
Não é difícil prever que Barack Obama, que já de si não se propunha revolucionar nada, será agora objecto de um processo de envolvimento e de afeiçoamento da parte de toda a direita, de todo o establishment, por forma a que ele faça cabalmente o que todos os inquilinos da Casa Branca são chamados a fazer (se não quiserem levar um tiro): dar continuidade, com o mínimo de adaptação que as circunstâncias actuais requerem, à política das forças que dominam os EUA. A imediata oferta de franca cooperação da direita e dos republicanos é isso que traduz. E tudo leva a crer que tal disponibilidade não representa apenas uma manobra de alcance partidário, mas corresponde à necessidade de unidade política, de criação de uma frente unida, sentida pelas classes dominantes norte-americanas perante as adversidades históricas que enfrentam.
Obama tem, assim – uma vez eleito e tornado, portanto, responsável por evitar rupturas na política norte-americana – todas as condições para (com as devidas distâncias) constituir para a população trabalhadora, e designadamente os negros, dos EUA a mesma desilusão que Lula da Silva constituiu para os trabalhadores brasileiros.
Mas, como se disse de início, os EUA estão a mudar porque as mudanças no mundo a isso os obrigam. E, portanto, independentemente dos arranjos que as classes dominantes norte-americanas façam para que o essencial continue na mesma, a marcha do mundo vai forçar os EUA a perder a sua posição de imperialismo dominante. Só não se sabe ainda com que custos e em que prazo.