A crise e as suas consequências
José Luís Félix — 24 Outubro 2008
Em meu entender nos dias de hoje o sistema capitalista esgotou as capacidades que lhe permitam dar uma resposta positiva aos problemas com que se depara e não consegue satisfazer as necessidades do conjunto das populações do globo. Isto tudo apesar das capacidades de produção terem atingido uma dimensão sem paralelo na história da humanidade, mas a distribuição é distorcida e a obtenção generalizada de bens e serviços só se encontra ao alcance daqueles que têm capacidade aquisitiva. Mesmo segundo os paradigmas do sistema, iníquos e destrutivos, a sede do lucro que é o principal móbil do sistema não encontra saídas que permitam satisfazer as necessidades básicas das populações.
Na realidade a mola propulsora do sistema, ou seja a acumulação de capital, tornou-se extremamente complicada nos países de capitalismo maduro, aqueles onde se encontram os neurónios do capital, fundamentalmente a Europa, os EUA e o Japão. O apregoado crescimento que se tem registado noutras zonas do globo, principalmente na China, tem como contrapartida o agravamento das condições de trabalho e o aumento do desemprego nas velhas metrópoles do capital, além do abandono de vastas áreas e populações doutras regiões que não têm a solvabilidade exigida nem proporcionam os lucros ambicionados.
Aparecem agora uns sujeitos a afirmar que tudo se resolverá através de uma regulação apertada sobre a especulação financeira, enquanto outros atribuem todas as responsabilidades da actual crise ao capitalismo global.
Estas observações são a vários títulos completamente erradas e mistificadoras. Em primeiro lugar porque a situação actual é uma consequência da evolução e da dinâmica do sistema, extremamente facilitada pelos diversos estados que têm tomado as medidas mais propícias para que isso aconteça.
Observemos a propósito que a grande expansão do capitalismo teve o seu período de “ouro” a seguir à segunda guerra mundial, com enormes taxas de acumulação de capital e cedências dos diversos estados a muitas das reformas e reivindicações exigidas pelos trabalhadores. Foi nesse período que as taxas de crescimento económico atingiram o mais elevado nível, bem superiores às actuais, como é evidenciado pelos mais diversos indicadores.
Mas desde o início dos anos 80, que o capitalismo viu reduzido este impulso e vive uma crise larvar. A um crescimento mais reduzido têm-se sucedido crises periódicas em diversos países, como a Rússia, o Japão, os chamados tigres asiáticos, a Turquia, o México e a Argentina. De modo geral esses países apenas recuperaram parte da situação anterior, à custa de enormes sacrifícios das suas populações e não voltaram à fogosidade anterior. Quem pagou e paga as consequências são os pobres e as classes médias. A situação actual na América Latina e nos países asiáticos é de extrema debilidade com consequências desastrosas para os trabalhadores. Quanto à África foi votada ao ostracismo. Mesmo na Europa e nos Estados Unidos as manchas de pobreza têm alastrado e as assimetrias que separam os níveis de vida dos ainda bem pagos, e sobretudo dos ricos, do conjunto da população, têm crescido de forma obscena. De maneira geral criou-se por todo o lado uma economia dual, em que o pólo dos pobres sustenta e reproduz o pólo dos capitalistas e dos possuidores de elevados rendimentos.
A produção automática e as tecnologias de informação não têm correspondência na melhoria do nível de vida da maioria das populações. Pelo contrário a miséria relativa tem crescido e muitos trabalhadores são “obrigados” a desenvolver duas e mais actividades para conseguirem manter o padrão de consumo a que foram habituados.
A desregulamentação generalizada, a livre circulação e o estabelecimento de capitais (mas não de trabalhadores!) corresponde a uma necessidade do capitalismo na fase actual, no sentido de conseguir deste modo obter os lucros ansiados. A estes anseios corresponderam os diversos governos que tudo têm conduzido de modo a facilitar este processo e a consequente concentração de capitais. Face à queda da taxa de lucro foi esta a solução encontrada pelo sistema, rapar capital por todo o mundo e explorar os trabalhadores e espoliar a natureza nos locais mais recônditos. Desta forma o capitalismo entrou em todos os pontos do globo e invadiu todos os escaninhos da sociedade. Nada parece escapar à mercadorização e à compra e venda de tudo e de todos. O sistema da mercadoria e as suas consequências, tornou-se de facto a directriz principal da existência que, empobrecida por este estilo de vida, se tornou de facto, uma reprodução da morte, da morte das relações entre os humanos e da natureza, agredida permanentemente pela sede do lucro. Com semelhante panorama corre sério risco a própria existência da vida no nosso planeta.
Face a este panorama e pasmados com a actual crise, que antes de ser financeira é económica, muitas vozes clamam por um maior intervencionismo estatal e exigem a estatização de vastos sectores da economia, ou seja aquilo que chamam nacionalizações.
Estas medidas, através do socorro aos bancos, seguradores e o capital em geral já está em marcha. Diversos estados acorrem em auxílio da “economia”, ou seja da manutenção das condições para a reprodução do sistema da exploração salarial. Mas, com nacionalizações ou sem elas, a realidade dos trabalhadores não se altera, continuam a ser peças de uma engrenagem que se lhes escapa por completo. As ditas “nacionalizações” também não alteram o essencial do problema, as dificuldades que o capitalismo encontra em obter taxas de lucro que ambiciona. Não tem à sua disposição sectores da economia que lhe proporcionem a rentabilidade que pretendem obter com os capitais investidos. O problema de fundo mantém-se, com ou sem banca “nacionalizada”.
Perante esta situação torna-se claro que a estatização de vários sectores da economia não resolve o problema. Na verdade o grande investimento que é efectuado pelos diversos actores do capital no sector financeiro e na especulação não é devido a qualquer característica malévola dos senhores do capital, como alguns nos querem fazer crer. Tal acontece apenas por uma razão, é na especulação e nos mercados financeiros que os capitalistas e os seus acólitos encontram as áreas de maior rentabilidade. Por isso mesmo 90% das transacções mundiais são efectuadas em áreas meramente financeiras e especulativas. O mito do odiento especulador, que ninguém conhece, a efectuar manigâncias especulativas com o dinheiro dos outros, não passa disso mesmo, de um mito. Todos especulam ou colocam os seus capitais nas mãos dos bancos, fundos de investimento e outros especialistas em especulação, por uma razão, a obtenção de maiores lucros que não conseguem nas suas áreas de negócios. Todos especulam, incluindo os diversos estados. Acaba agora mesmo de ser admitido que o governo português especula na Bolsa com o dinheiro da Segurança Social. Por isso mesmo foram derretidas largas quantias, ainda não contabilizadas completamente, mas que os impropriamente chamados responsáveis admitem atingir os 255 milhões de euros. Teremos de exigir que o governo proceda neste caso, no mínimo da mesma forma como procedeu com os bancos a quem abonou largos milhões. Queremos o dinheiro dos nossos descontos de volta!
Face á necessidade especulativa que o capital utiliza como bóia de salvação, considero que tentar obrigar hipoteticamente o capital a submeter-se a regras que dificultem estas lucrativas operações, não resolve a questão de fundo e levará a um marasmo maior ainda. Perante uma situação desse tipo os capitalistas reduzirão ainda mais o investimento activando a sua conhecida a greve ao investimento. Não acredito, no entanto, que os clowns da política, avancem nesse sentido. Considero que tudo irá prosseguir no essencial de forma semelhante, até que sobrevenha uma nova crise.
Quem pagará tudo isto serão, uma vez mais, os mesmos de sempre, os mais pobres, os indefesos, e os trabalhadores iludidos como de costume. Aliás já se ouvem as vozes dos especialistas e dos corifeus do capital a clamar por sacrifícios a favor da “economia nacional”, a folha de parra que encobre os seus interesses.
Perante este panorama entendo que a saída que se nos depara passa essencialmente pela luta das populações na defesa dos seus direitos, livres de cangas “económicas” e patrioteiras, de forma autónoma. Terá de haver uma redescoberta do sentido da abolição salarial e de um caminho que proporcione uma sociedade em que o paradigma do lucro seja substituído por um outro, a satisfação das necessidades das populações, uma sociedade na qual os produtores/consumidores decidam o que produzir e como produzir.
Alicerçados neste novo paradigma poderemos encaminharmo-nos para uma vida harmoniosa, em que prevaleça a entreajuda e na qual as relações com a natureza deixem de se basear no saque e na rapina.
Para atingir esse objectivo teremos de reflectir sobre a realidade actual e os caminhos a seguir, lançando-nos em acções consequentes sem megalomanias numa vereda de entreajuda, quantas vezes através de pequenos passos, trocando experiências e analisando o caminho percorrido, tendo sempre presente a necessidade de actuando localmente, nos associarmos a outras iniciativas de forma federativa, que nos proporcionem ultrapassar os nossos regionalismos e as fronteiras que nos são impostas. A nossa caminhada terá de ser indubitavelmente internacionalista.
Comentários dos leitores
•Josué Pereira da Silva 30/10/2008, 19:34
Gostei do artigo, gostaria de saber mais sobre o autor, então, envie informações sobre o autor e outras publicações do mesmo.