Jerónimo e os gatunos
João Bernardo — 17 Setembro 2008
No seu discurso por ocasião da Festa do Avante!, Jerónimo de Sousa, secretário-geral do Partido Comunista Português, proferiu algumas curiosas declarações acerca de «o sobressalto e a justa preocupação dos portugueses» relativamente às «medidas concretas que no curto prazo possam suster o avanço da criminalidade». Mas quando as pessoas mais recordadas da dialéctica marxista esperariam que Jerónimo de Sousa reivindicasse uma repartição menos desigual dos rendimentos e uma luta contra a pobreza nos bairros marginalizados das periferias, o que ouviram foi a reclamação contra a «falta de polícias nas ruas das nossas vilas e cidades».
Este discurso da ordem destina-se provavelmente a atrair aqueles trabalhadores que, pondo as questões de segurança à frente das questões de classe, aceitam o simplismo reaccionário com que a direita, a televisão e a imprensa popular gostam de apresentar o problema; porque Jerónimo de Sousa sabe tão bem como nós que nunca há mais ladrões por haver menos polícias, mas, ao invés, que há sempre mais polícias por haver mais ladrões. A causa dos roubos é muito diferente. E se de um lado se aumentam a pobreza e a precarização do trabalho e do outro lado se aumentam os efectivos policiais, no meio o que é que fica?
Há mais de século e meio, o genial romancista Balzac, que apesar de ser politicamente conservador era muitíssimo mais atento do que Jerónimo de Sousa às contradições sociais, explicava pela voz de um dos seus mais pujantes personagens, uma espécie de anarquista individualista: «Os inimigos da ordem social aproveitam-se deste contraste para se esganiçarem contra a justiça e se indignarem em nome do povo porque se manda para os trabalhos forçados alguém que numa noite vai roubar galinhas num recinto habitado, enquanto se condena só a alguns meses de prisão um homem que arruína famílias com uma falência fraudulenta, mas estes hipócritas sabem muito bem que ao condenarem o ladrão os juízes defendem a barreira entre os pobres e os ricos, que se fosse derrubada traria o fim da ordem social; enquanto o autor da bancarrota, o hábil interceptor de heranças, o banqueiro que dá cabo de um negócio em seu benefício não provocam senão transferências de fortuna».
Pois é. Roubar quando já se tem dinheiro no bolso é muito diferente de roubar quando não se tem dinheiro nenhum.
Comentários dos leitores
•António Alvão 18/9/2008, 17:04
João Bernardo, parabéns pelo texto. Jerónimo de Sousa em vez de lutar pelo comunismo, de forma que o celeiro da
produção de riqueza pertença a todos - e neste caso o roubo e o crime tornar-se-ão impossíveis - exige ao governo capitalista mais repressão contra o crime da roubalheira.
Mas J. S. não defende este modelo de comunismo que acabo de citar. O comunismo que ele defende é o pseudo, de cima para baixo, de forma piramidal, a começar no chefe supremo-totalitário.
J. S. precisa de estudar a letra da Internacional !!!
•Miguel J. 19/9/2008, 21:35
Discordo:
1º Jerónimo de Sousa deixou bem claro (e em consonância com as sucessivas posições do PCP) que a degradação das condições sociais estão na origem do crime.
2º A redução nos custos da segurança é um facto. Os polícias, tal como todos os outros trabalhadores, têm direito a condições condignas de trabalho que não estão a ser respeitadas, que se reflecte no serviço prestado.
3º Chamo a atenção para o parágrafo seguinte:
"Não é assim que se vão resolver os problemas. Nem com o caminho de um Estado policial, de uma sociedade cada vez mais vigiada, onde se cruzam e entrelaçam cada vez mais as soluções do cidadão e do carro “chipado”, a vídeo vigilância, os cartões de informação e de identificação concentrados, com uma polícia mais repressiva sobre quem luta e quem resiste, com um Secretário-Geral da Segurança Interna, verdadeiro super-polícia a mando do governo, com poderes que nunca ninguém teve em democracia.
Eu nada tenho quanto aos polícias fazerem o seu trabalho, mas sim contra um estado policial. Foi também isso que Jerónimo disse no seu discurso sem sombra de dúvida.
Cumprimentos
•António 23/9/2008, 16:00
O ideal seria, já amanhã, que toda a estrutura económica fosse revolucionada de modo a que a riqueza e os meios de produção dela a todos pertencesse e a todos servisse igualmente. Desta forma, já depois de amanhã não haveria crime, e os que pouco têm não roubariam os que têm pouco, e nenhum trabalhador correria o risco de ser violentado por outro em piores condições que ele.
Mas a realidade material apresenta-se inversa à ideal, logo não podemos fingir a sua não existência, ainda que ela seja consequência da exploração capitalista. Por isso, e sem abandonar a luta por uma sociedade sem classes, os revolucionários têm de atender aos problemas da realidade material presente sem comprometer a revolução futura pela qual combatem.
Ser dialéctico é isto, uma correlação entre o ideal que temos e as possibilidades que a realidade material que se nos depara oferece.
Quando a primeira se separa da segunda, por muita bonita que seja, a nossa consciência revolucionária torna-se idealista e ficamos extremamente admirados por, apesar de defendermos ideias tão belas para o futuro, nos vermos tão distantes da classe que supostamente pertencemos e defendemos. Ou pior ainda, quando à nossa volta os aplausos vêm de uma mão cheia de iluminados bem pensantes provenientes das elites da média e alta burguesia que têm todo o interesse no idealismo como tão bem saltou à vista no pós 25 de Abril. Os idealistas da extrema esquerda da altura deram valentes pulos prá direita depois de minarem todo o processo revolucionário. Hoje, como ontem, quando a luta de classes se agudiza, o processo repete-se. Esperemos que as consequências não sejam tão graves.
Seria bom também que lessem o discurso do Jerónimo na sua totalidade e não isolassem apenas as frases que dão jeito à vossa argumentação. O discurso é um todo dialéctico também. E claro, leiam-no sem preconceitos idealistas.
"Para não ter protestos vãos,
Para sair deste antro estreito,
Façamos nós por nossas mãos,
Tudo o que a nós diz respeito!"
•Francisco d'Oliveira Raposo 26/9/2008, 15:15
Neste particular, alguns grupos de esquerda defendem a reivindicação de mecanismos de controlo social das forças repressivas de estado, nomeadamente com comissões de acompanhamento não apenas parlamentares mas constituídas por representantes de organizações operárias e laborais, nomeadamente dos sindicatos.
Creio que esta reivindicação deveria ser colocada, bem como uma particular atenção à denuncia da intimidação dos jovens, das minorias e dos pobres e o alerta para a integração " na paisagem social" das forças repressivas para tornar aceitável, como mal menor, a inevitável repressão resultante do desenvolvimento da crise social e económica que vivemos.
Por todo o lado vê-se pspês, gnrs, sefs e afins à caça dos pequenos delinquentes, mas os grandes bandidos - o grande capital, o patronato, os políticos corruptos - esses continuam a criar bodes expiatórios e a usar o aparelho repressivo do seu estado.
•João Bernardo 1/10/2008, 15:16
Vivo num país, o Brasil, onde a exposição dos trabalhadores aos pequenos furtos e aos assaltos é muitíssimo maior do que em Portugal, até porque os ricos se protegem com muralhas, cercas eléctricas e guardas armados. Ao pequeno ladrão só resta roubar os pobres, e este é, sem dúvida, um dos grandes problemas que a classe trabalhadora aqui enfrenta. A resposta dos sucessivos governos tem sido a de colocar mais polícias nas ruas, e sempre são considerados insuficientes, erguendo-se um clamor a pedir mais ainda. E vejam o que sucede. Muitos dos polícias que patrulham os bairros pobres e as favelas são rapidamente corrompidos pelos traficantes e, assim como começam a receber dinheiro deles, começam a extorquir dinheiro à população. As favelas do Rio de Janeiro são um caso extremo, onde os habitantes vivem no fogo cruzado de traficantes e polícias que cada vez menos se distinguem. E se é certo que os chefes locais do tráfico cumprem uma certa função de assistência social, facilitando pequenos empréstimos em boas condições, arranjando empregos, etc., a polícia nem isto. Quem pensa que o aumento do número de polícias reduz a criminalidade devia olhar com atenção para o caso do Brasil. Se as circunstâncias gerais se mantiverem, são os polícias a converter-se em criminosos. Talvez, afinal, eu e outros não andemos nas nuvens.
•António Alvão 11/10/2008, 21:16
Muito bem. Jerónimo de Sousa deve de ser defendido... De muitas coisas, na minha opinião, por exemplo: de apoiar uma super-potência de dois capitalismos selvagens, e bem acasalados: o de estado e o privado, sem direitos para os trabalhadores e trabalhadoras; quando as empresas lhes não pagam, como não têm onde se queixar, choram!
Como o proletariado não tem pátria _ qualquer revolucionário se deve sentir ofendido e revoltado pelos maus tratos infringidos a trabalhadores _ quer sejam portugueses, chineses, americanos, russos, etc.
J. Sousa deve também de ser defendido de uma matriz ideológica monolítica, sectária e autoritária; que teve início em 1921 na União Soviética. É filha dos coveiros da Revolução de Outubro que, recusaram o socialismo, fuzilaram os que o queriam e, andaram oitenta anos a aprofundar o túmulo de Marx.
No chamado PREC houve de facto muito oportunista político; houve um partido que ao fim de pouco tempo de se ter formado a FUR, saíu para fazer uma aliança com o PS e o PPD/PSD, estes é que recusaram.
A maioria dos políticos (neste caso os de esquerda) foram para a política, não para fazerem a revolução, mas para tratarem da sua vidinha.
No PREC, sabemos muito bem o quanto o PC gostava dos partidos maoistas; naquela altura eram a CIA! Hoje o maoísmo é "muito bom"! Comentários para quê?
Sabemos muito bem o que foi feito dos partidos chamados de extrema-esquerda e dos movimentos libertários dos países onde estiveram no poder os partidos comunistas! Ainda temos fresco na memória a história da guerra civil espanhola.
Todos aqueles que impuseram e impõem ainda a sua ideologia aos outros pelo terror foram e são autênticas bestas humanas. O futuro nos livre desses totalitarismos ideológicos.
Sabemos bem que o povo português não se pode queixar do PC como partido de oposição. É o passado histórico de regimes comunistas totalitários que estiveram no poder em quase metade deste planeta, onde o PCP bebia a sua ideologia e ainda hoje mantém como referência ideológica a China e a Coreia do Norte, que não ajuda o PCP. _ Só é revolucionário o que liberta e nunca o que oprime!(...)