Salazar, M.S. Fonseca e o negócio da “cultura”

Cândido Guedes / Youri Paiva — 1 Agosto 2008

salazar72dpi.jpgDecididamente, com a ajuda do “concurso” que a RTP inventou no ano passado para determinar “o maior português de sempre”, está na moda o ditador fascista Salazar. Uma sequência de acontecimentos culturais inteligente e oportuna (não veio Salazar, em 1932, “salvar Portugal da crise”? e não estamos nós “em crise”?) veio, a seguir a esse “concurso”, pôr a render os “aspectos humanos” do homem que nos impôs o analfabetismo, a opressão religiosa, o atraso económico, a Pide, o campo de concentração do Tarrafal e milhares de mortos em 13 anos de guerra colonial. Nomeadamente Os meus 35 anos com Salazar, da afilhada do ditador Maria da Conceição Rita e de Joaquim Vieira, e o livro da jornalista Felícia Cabrita Amores de Salazar.

Agora é o ex-director da SIC Manuel S. Fonseca, nas funções de administrador delegado da Valentim de Carvalho-Filmes, que anuncia a produção de uma mini-série sobre A Vida Privada de Salazar e de um filme sobre a vida de Amália (ver a nossa breve A marca Salazar). Fonseca foi durante anos responsável pela intoxicação da SIC na área do chamado “entretenimento”. Não surpreende que ele queira fazer dinheiro à custa de conteúdos pimba assentes na “ditadura das audiências” (o mesmo acontece com a editora Guerra e Paz, que fundou ao sair da SIC, onde começou com algumas obras de elevado nível de qualidade, como as cartas entre Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena, e agora edita qualquer mediocridade que se possa vender bem).

msfonseca.jpgMas acontece que o caso de A Vida Privada de Salazar – para além de sintoma da aspiração dos grandes interesses capitalistas a um Estado “forte” – está a ser apoiado, como outras iniciativas rendosas para os privados, com milhões de euros de dinheiros públicos.

Com efeito, estas produções – que vieram mesmo a tempo de salvar a Valentim de Carvalho de uma mais que provável falência – são largamente financiadas por um Fundo de Apoio ao Cinema e aos Audiovisuais (FICA), previsto na nova lei do cinema do tempo de Santana Lopes/Sampaio (em 2004) e criado por decreto-lei já no tempo de Sócrates (em 2006).

Este Fundo tem a participação do Estado através do IAPMEI (tutelado pelo Ministério da Economia), na módica quantia de 33 milhões de euros, da PT (ZON Multimédia) com 25 milhões, da RTP (5 milhões), e da SIC e da TVI (10 milhões cada). A gestão deste dinheiro, embora tenham feito correr que houve ”concurso público”, ficou decidida logo na primeira assembleia de sócios: o capital, realizado em numerário, é depositado no Banco Espírito Santo e a “entidade gestora do fundo” é subsidiária do BES: a ESAF (Espírito Santo Fundos de Investimento Imobiliário S.A.).

Note-se que, numa área como esta, fortemente condicionadora dos gostos e do nível cultural de vastas camadas da população, o FICA se remete a objectivos puramente empresariais. É de esperar, portanto, que o critério seja, aqui também, o da rentabilidade comercial das obras produzidas – ou seja, o dos lucros das produtoras – com total submissão aos modelos de entretenimento degradados e degradantes da lógica das “audiências” que impera nas televisões. Isto é, estes 33 milhões de euros do nosso bolso não são gastos para promover o nível cultural do povo, mas sim para proporcionar lucros às empresas privadas que produzem e difundem esses “produtos”. A “indústria da cultura”, como dizia a ex-ministra Isabel Pires de Lima e dizem quase todos. A cultura é, para a classe dominante, um negócio como outro qualquer – e não uma forma de libertação e de acesso à beleza e ao saber.


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