Abençoada Irlanda!

José Mário Branco — 16 Junho 2008

irlandanao_72dpi.jpgAntónio Esteves Martins, em reportagem na RTP, exprimiu, como é seu papel, o ponto de vista das classes dominantes europeias. Sabemos que o “não” irlandês ao tratado europeu é o resultado dos votos conjugados da direita nacionalista e da esquerda independente contra uma versão maquilhada da “constituição” europeia chumbada há 3 anos na França e na Holanda. Mas Esteves Martins diz tratar-se de um mero “percalço referendário” que urge ultrapassar “com inteligência, habilidade e determinação”.

Depois do chumbo de 2005, a solução encontrada pelos governos e pelos tecnocratas da União Europeia foi clara: acabar com veleidades “democráticas” que pusessem em risco a unificação política das classes dominantes europeias. Por isso inventaram este “Tratado de Lisboa”, ponto alto da presidência europeia de Sócrates, que é igualzinho em mais de 90% ao documento antes derrotado. E (quase) todos decidiram remeter a ratificação para os parlamentos como forma de evitar surpresas nas urnas. “Quase” porque, na Irlanda, a constituição do país obriga à ratificação dos tratados por via de referendo.

Já aqui foi descrito, por M. Gouveia, o modo como estes tecnocratas evitam que o cidadão comum possa perceber o que está em causa e o que está realmente a ser decidido, e lhe apresentam as opções do capitalismo europeu de forma a que lhe seja impossível optar pelo que quer que seja. Recentemente, perante a perspectiva do “não” irlandês, o comissário europeu do Mercado Interno e dos Serviços, o irlandês Charlie McCreevy, chegou a afirmar que “há menos de 250 entre os 4,2 milhões de irlandeses que terão lido o tratado do princípio ao fim e menos de 25 dos 250 compreendem cada secção e subsecção do texto”.

A recusa do tratado pela Irlanda deriva de uma amálgama de razões, nem sempre as melhores. Mas significa que os povos – quando têm ocasião de se exprimir – não só se alheiam (abstendo-se) dos “sins” massivamente propagandeados como se unem num reflexo de autodefesa, em favor do “não”. No caso irlandês, todos os partidos dominantes e os próprios sindicatos defendiam o “sim”, e grande parte do “não” veio dos pescadores, dos desempregados e precários e de uma terceira idade insegura.

Os aspectos transnacionais de certas lutas recentes – caso da pesca e dos transportes em França, Espanha e Portugal – mostram, apesar da mistura de interesses de classe que expressaram, que os trabalhadores só conseguirão alguma coisa, nesta Europa dos patrões, unindo-se por sobre as fronteiras dos seus países e lutando juntos por uma Europa dos trabalhadores.


Comentários dos leitores

Francisco d'Oliveira Raposo 17/6/2008, 13:12

Se os trabalhadores se revissem nos seus sindicatos talvez não fosse significativo a maioria dos sindicatos terem apoiado o SIM e os bairros operários terem votado "Não".
Ainda assim, houve efectivamente uma campanha anti-capitalista centrada no combate às privatizações, contra a destruição de direitos laborais e denunciando a deriva armamentista da UE para reforçar a NATO.
Socialismo Revolucionário: " Tratado de Lisboa" dos patrões derrotado pelos trabalhadores irlandeses
Socialismo Revolucionário: " Tratado de Lisboa" dos patrões derrotado pelos trabalhadores irlandeses
Um abraço
Francisco d'Oliveira Raposo

Gregório Trindade Curto 18/6/2008, 0:48

O único povo a pronunciar-se sobre o Tratado de Lisboa - Tratado constitucional, ou constituição europeia mascarada - foi o Irlandês e ele disse não! Os restantes Estados que o ratificaram, fizeram-no à revelia da vontade popular expressa, através dos seus parlamentos.
Subsiste uma dúvida: Se esses Estados tivessem submetido o Tratado a referendo popular, a resposta desses povos teria sido igual à dos parlamentos desses países?
De algumas coisas eu não tenho dúvidas:
a) Sócrates prometeu ao povo português que, Constituição ou Tratado constitucional europeus, seriam submetidos a referendo popular. Não o fez, mentiu mais uma vez! tornou-se claro que, apesar da capa de estadista, não passa dum reles e vulgar vigarista que tem de ser varrido, sem mais demoras, da governação e, com ele, todos os seus correligionários. Ou será que hoje já é aceitável o povo deixar-se governar por aldrabões?
b) Sócrates revelou o seu carácter servilista perante os interesses dos seus pares europeus mais poderosos. É um retrato fiel da burguesia portuguesa dependente, até à medula, do capital internacional que só consegue revelar algum poder quando reprime os trabalhadores que lutam por um futuro melhor. Frágil, portanto.
c) Os patrões europeus de Sócrates, e o seu "porreiro pá" Barroso, começam a desdizer o que foi considerado imprescindível: a unanimidade dos estados membros para que o Tratado entrasse em vigor.
Já reclamam uma união europeia sem a Irlanda. Já se anunciam represálias sobre a Irlanda caso o seu governo não submeta o Tratado a segundo referendo. Já se ameaça de represálias os governos que ainda não ratificaram o Tratado e chovem os conselhos para que se deixem de veleidades referendais.
Chantagem, ameaças, corrupção, vigarices, roubo, guerra, são o pão nosso de cada dia da burguesia que se engorda cada vez mais à custa do cada vez maior emagrecimento do povo trabalhador.
Por muito que algumas esquerdas teimem em negar a sua existência, a luta de classes está cada vez mais viva e mais presente. Os explorados têm que se agrupar, acumular forças e munirem-se de uma política revolucionária que lhes permita afrontar a burguesia com sucesso. Doutro modo, estaremos a transferir para os vindouros tarefas políticas que nos cabem realizar.
Isso não é bonito!


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