De boas intenções…

José Mário Branco — 25 Maio 2008

miseriaportugal_72dpi.jpgCoordenador de um novo estudo intitulado “Um Olhar sobre a Pobreza”, o professor Alfredo Bruto da Costa dá hoje (sexta-feira, 23 de Maio) uma interessante entrevista ao jornal Público, cuja leitura a todos aconselhamos. Trata-se de um repositório dos raciocínios labirínticos em que, acerca desse tema, se vai esfalfando tanta gente bem intencionada, caso do entrevistado. Desde há longa data envolvido na análise da pobreza em Portugal e da sua incidência no tecido social do país, e mesmo da sua denúncia, Bruto da Costa, quando é alvo de perguntas directas do jornalista acerca das razões e origens da pobreza, mostra-se sempre incapaz de assumir as causas que lhe estão na raiz e de mostrar o papel do Estado na (não-) distribuição da riqueza.

“É preciso subir os salários e diversificar as fontes de rendimento”, oferece o jornal em título, citando o entrevistado. E mais adiante: “Os baixos salários são um problema grave, que contribui para a pobreza em Portugal. É preciso aumentar os ordenados e democratizar as empresas.”

Democratizar as empresas?! Que quer Bruto da Costa dizer com uma (aparentemente) tão subversiva palavra de ordem? Ele explica: “Defendo que deve haver uma diversificação das fontes de rendimento: uma parte do trabalho, outra do capital, o que implica uma democratização no acesso ao capital, que não é só poder comprar uma acção: o número de acções que um cidadão comum tem não lhe permite ter a mais pequena influência na gestão da empresa. O que importa que o capital esteja disseminado quando quem continua a mandar são os grandes? A democratização do capital deve ser também a democratização da empresa”. Mas, ou as acções estão concentradas em grandes pacotes, e então a empresa está directa ou indirectamente nas mãos do pequeno grupo dos principais accionistas, ou as acções estão dispersas pela população, e então a empresa está, para todos os efeitos práticos, nas mãos dos seus administradores, que se perpetuam através da cooptação. Não vemos que seja possível democratizar a apropriação do capital. “Democratizar” é, nos dias que correm, uma palavra tão vaga…

A entrevista nada nos diz sobre a distribuição da riqueza criada, entre o capital e o trabalho. O fundamento da desigualdade resulta da exploração, do facto de haver uns que vendem o seu tempo de trabalho e de haver outros que mandam sobre o tempo de trabalho dos primeiros. Claro que é possível democratizar esta situação, mas então acaba-se com o capitalismo. Por isso Bruto da Costa nada nos diz sobre o poder de decisão nas empresas, quanto à sua gestão, à organização da produção e à sua distribuição.

Estamos fartos de ouvir a conversa – mais uma vez aqui presente – da “qualificação da mão-de-obra”, neste país onde dezenas de milhares de diplomados estão no desemprego, onde tantos outros se desenrascam em trabalhos precários que nada têm a ver com as suas qualificações. É certo que Bruto da Costa refere, com alguma acuidade, a falta de qualificação dos próprios empresários (capitalistas e gestores) enquanto tais, mas que conclusões tira ele desse facto? Nenhumas – a não ser um reforço dessa política tipicamente cristã que é o regime assistencial do Estado, uma espécie de caridade oficial que em nada pode inflectir (muito menos resolver) a dinâmica essencial e inevitável da economia capitalista dos nossos dias: empobrecer a maioria à custa do enriquecimento de uns poucos.

Não hostilizamos as boas intenções dos que se preocupam genuinamente com o sofrimento dos pobres. Mas, se há quem considere utópico acabar com o capitalismo, a nós parece-nos sobretudo utópico usar as boas intenções para remendar o capitalismo.


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