O que falhou no movimento popular?

Manuel Monteiro — 24 Abril 2008

25abril1_200dpi_72dpi.jpgMuitas pessoas, ao abordarem o resultado final do processo revolucionário de 74/75, chegam à conclusão, um tanto fatalista, que outro resultado não seria de esperar. Partem da ideia de que o que se passou foi um golpe militar, apoiado pela burguesia – ou com a sua concordância –, que visava tentar sair do atoleiro da guerra colonial, instalando, ao mesmo tempo, a democracia formal, que lhe permitisse integrar Portugal na União Europeia.

Democracia a sério
Só que, como se sabe, este golpe militar rapidamente deu passagem a um processo revolucionário. Quando as massas populares, apesar da crença que mantinham no Movimento das Forças Armadas, passaram a movimentaram-se em luta pelos seus próprios interesses, deitaram por terra os planos iniciais da burguesia. Querem implantar a democracia?, perguntavam as pessoas; e rapidamente elas próprias respondiam: pois vamos a isso. E as fábricas, os quartéis, os latifúndios, as casas devolutas começaram a ser ocupadas. Isto, para as classes populares e trabalhadoras, é que era a democracia, o socialismo e a revolução, de que se falava.

Neste processo surgiram, espontaneamente, as formas de organização popular: as comissões de trabalhadores, de moradores, de soldados e marinheiros. Mais do que temer os partidos de esquerda, da pseudo-esquerda ou da esquerda revolucionária, a burguesia entrou em pânico devido à acção destes órgãos populares de base.

Organização popular
Durante este período os sucessivos governos, o parlamento, as polícias dispunham de uma capacidade de acção limitada. Larga parte da população e dos trabalhadores tinham, em contrapartida, nos locais de trabalho e nos sítios onde moravam, órgãos que lhe davam poder de intervenção. Na verdade, eram as comissões de trabalhadores e as comissões de moradores que geriam muitos dos interesses das populações, sobretudo nas cinturas industriais e nas grandes cidades: Lisboa e toda a Margem Sul, Porto, Coimbra. No Alentejo e parte do Ribatejo, surgiram as cooperativas agrícolas e depois as unidades colectivas de produção. Em alguns quartéis constituíram-se órgãos democraticamente eleitos pelos soldados e marinheiros – as comissões de soldados e marinheiros – e onde isso não era possível existiam estruturas semi-clandestinas com grande poder de influência sobre os soldados e marinheiros.

O exemplo da Inter-Empresas
Através da comissão de trabalhadores da fábrica onde trabalhava na altura, a Cergal – uma empresa cervejeira – participei na organização das comissões de trabalhadores da cintura industrial de Lisboa e Margem Sul, numa estrutura denominada Inter-Empresas. Esta organização foi importante porque deu um sentido mais abrangente às lutas operárias. Aliás, a estrutura nasceu porque muitas fábricas em luta sentiram necessidade de buscar apoios e de articular a sua luta com as de outras fábricas. A Inter-Empresas editava um pequeno jornal e organizou a mais importante manifestação operária desse período, a 7 de Fevereiro de 1975. (ver destaque no final do artigo)

Uma via alternativa
Discutiu-se então nas Inter-Empresas o lançamento a nível nacional da organização. A ideia era criar uma estrutura popular e revolucionária que fosse uma alternativa ao poder burguês. Não era contra os partidos, mas tinha uma função diferente: estruturar da base ao topo os órgãos de vontade popular e generalizar as formas de poder popular que tinham germinado. Juntamente com todas estas estruturas de poder que se iam formando, podia ter sido uma alternativa revolucionária às instituições do poder burguês democrático que então se procurava consolidar.

Momento de viragem
As eleições para a Assembleia Constituinte, realizadas em 25 de Abril de 1975, foram um momento determinante na evolução política do país: representaram um passo na consolidação do poder burguês e no esforço deste para manietar as lutas e as formas de organização populares. As forças partidárias revolucionárias, que se preparavam para concorrer às eleições, tinham muitos dos seus principais quadros operários na Inter-Empresas, nomeadamente na direcção da estrutura. A maioria desses operários veio a fazer parte das listas (sobretudo da UDP) concorrentes ao parlamento burguês. A partir desse momento a Inter-Empresas entrou num processo de agonia rápida, extinguindo-se pouco depois.

Um debate por concluir
Mais do que afirmar certezas, acabo com uma série de interrogações. Com um objectivo: lançar nas colunas do MV um debate sobre as questões que aqui levanto, ou outras que os leitores possam colocar.

a) Teria que acabar assim o processo revolucionário, com uma derrota desmoralizante – que perdura até hoje – para o movimento popular?
b) Não teria sido possível outra resistência popular ao golpe do 25 de Novembro se os trabalhadores estivessem organizados a nível nacional, conforme era o projecto, por exemplo, da Inter-Empresas?
c) Essa resistência levaria a uma guerra civil?
d) E duma eventual guerra civil não poderia surgir uma revolução vitoriosa (ainda que fosse por pouco tempo, devido à conjuntura internacional)?
e) Foi correcta a decisão dos dirigentes das organizações revolucionárias de canalizar forças para as eleições ao parlamento burguês, liquidando na prática uma importante estrutura operária?
f) Verificou-se ou não, com isso, um grave desvio parlamentarista das organizações revolucionárias da altura?

Destaque
Uma manifestação decisiva

Com palavras de ordem contra o capitalismo, contra os patrões sabotadores e contra o imperialismo (a NATO, numa acção provocatória contra o processo revolucionário, fazia manobras militares ao largo da costa portuguesa), a manifestação percorreu as principais artérias de Lisboa, rumo ao Ministério do Trabalho, na Praça de Londres. No local encontravam-se os soldados do RALIS para protegerem as instalações contra um eventual ataque dos operários. Quando a manifestação se aproximou da praça ouviu-se uma palavra de ordem: “Soldados sempre, sempre ao lado do povo”. Os soldados viraram as metralhadoras para o chão, cerraram os punhos e responderam: “Soldados, sempre, sempre ao lado do povo”. A acção foi de tal maneira impressionante que comoveu todos os presentes. Mas sobretudo mostrou em termos práticos que era possível fazer passar os soldados para o lado das classes trabalhadoras em apoio das suas lutas, retirando poder à hierarquia do MFA e enfraquecendo a tutela que exercia sobre as acções de massas.


Comentários dos leitores

Rodolfo 25/4/2008, 13:32

É importante que se esclareçam as siglas para que os leitores não portugueses saibam do que se trata.
A questão das forças armadas é importante pq não consigo imaginar possibilidade de vitória se os trabalhadores podem ser submetidos militarmente. Teriam os trabalhadores capacidade de derrotar a força física posta à serviço da elite?

velha toupeira 25/4/2008, 13:37

As tais forças partidárias "revolucionárias" tinham esse "desvio" nos genes. O proletariado português revelou-se demasiado imaturo ao ter deixado a iniciativa a essas forças e aos sectores esquerdistas do estado.

Rodolfo 25/4/2008, 14:53

UMA DÚVIDA DE UM JOVEM:
Pra mim que só tenho um conhecimento livresco do que seja uma revolução, além da dúvida sobre a capacidade de vencer belicamente, tenho a dúvida sobre se, numa estrutura tão complexa como o é a sociedade de hoje, os trabalhadores possuem realmente capacidade de administrar diretamente a sociedade. Será que não chegamos num grau tão amplo de complexização na qual seja sempre necessário a gestão por parte de uma elite muito bem instruída?

João Bernardo 3/5/2008, 16:30

Sem dúvida que a tecnologia é hoje muito mais complexa, mas isto significa também que dispomos de meios técnicos mais eficazes para administrar essa complexidade. Aliás, os altos gestores e administradores limitam-se a ditar as grandes orientações estratégicas, e quem as implementa na prática não são eles mas os trabalhadores qualificados. Vou dar o exemplo de um dos sectores mais complexos de administrar. No Brasil, a longuíssima greve de zelo (operação padrão) dos controladores aéreos mostrou que os grandes patrões do tráfico aéreo nada dirigem se a força de trabalho qualificada não estiver disposta a aplicar as suas directivas. Acho que o problema principal de uma época revolucionária consiste na criação de novas instituições de decisão popular que consigam formular estratégias de outro tipo, e que mesmo numa fase inicial não faltarão trabalhadores com qualificações suficientes para passarem à prática essas estratégias. Depois terá de haver lutas para que as qualificações se ampliem, senão aqueles que as possuem converter-se-ão numa nova elite. É esta a complexidade de um processo revolucionário, que combate os inimigos externos e ao mesmo tempo tem de combater os novos inimigos internos. Não é de um dia para o outro.


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