Kosovo, ou o saco por encher
João Bernardo — 13 Março 2008
«Kosovo já está feito; agora o que precisamos é de criar Kosovars», declarou Migjen Kelmendi, chefe de redacção do jornal Java, publicado em Pristina (citado em The Economist, 23 de Fevereiro de 2008, pág. 32). Estas palavras parecem espantosas, pois não é costume haver primeiro um sentimento de independência difundido entre a população para haver depois uma luta pela independência?
Mas com o esfacelamento da antiga Jugoslávia ocorreu o processo exactamente oposto. «A fragmentação da Jugoslávia», escreveu Warren Zimmermann, antigo embaixador dos Estados Unidos em Belgrado, na conceituada revista Foreign Affairs, (Março-Abril de 1995, pág. 12), «constitui um exemplo clássico de um nacionalismo operando de cima para baixo. Fomentou-se o nacionalismo numa região onde, ao longo da história, a paz prevalecera sobre a guerra e onde um quarto da população havia procedido a casamentos mistos. Os responsáveis por esta actuação apoiaram a violência étnica, quando não a provocaram, com o intuito de gerar ódios que podiam então ser amplificados pela imprensa, abrindo o caminho para novas violências». Em termos simples, armaram-se bandos de gangsters de um lado e outro, ou de todos os lados ao mesmo tempo, e deixaram-nos criar uma situação tal que a população comum, para se proteger dos gangsters do bairro vizinho, tinha de se esconder atrás dos gangsters do seu próprio bairro.
E, afinal, por que não? No final do século XIX e no começo do século XX os grandes patrões norte-americanos introduziram dentro das empresas os gangsters e os seus métodos como um instrumento de disciplina e controlo da força de trabalho. Pouco depois, mal terminara a guerra mundial de 1914-1918, Mussolini procedeu à grande invenção do fascismo, a introdução do gangsterismo na vida política e, em seguida, nas operações normais do Estado, e os chefes fascistas dos outros países usaram o mesmo método. Nos Estados Unidos, acabada a segunda guerra mundial e inaugurada a guerra fria, o perene chefe do FBI, J. Edgar Hoover, recorreu ao crime organizado para expulsar a esquerda dos sindicatos e persegui-la no resto do país. Mais recentemente, as privatizações na Rússia ofereceram uma bela oportunidade de negócios para o crime organizado à escala mundial. Viktor Ilyukhin, um deputado do Partido Comunista que presidia à comissão de assuntos de segurança da câmara baixa do parlamento russo, afirmou em 1994 que o crime organizado controlava 81% das acções com direito a voto nas firmas privatizadas, embora na mesma ocasião um estudo realizado pela universitária norte-americana Louise Shelley e difundido pelo Banco Mundial tivesse chegado à conclusão − optimista! − de que o crime organizado controlava apenas cerca de 40% da economia russa desde o início das privatizações.
E Kosovo, ou antes, os Kosovars, os tais que ainda não existem, onde estão eles? As estatísticas oficiais, leio no referido número de The Economist, indicam que entre 40% e 50% da população activa está no desemprego e não tem fontes de rendimentos, e entre os jovens a proporção de desempregados sobe a 2/3. Como eles não morrem de fome, o dinheiro para comer vem-lhes de algum lado, e lá voltamos nós ao começo da história. Esta preponderância do que em termos delicados se chama «economia paralela» confirma a hegemonia detida pelo gangsterismo no novo país. Será que são os gangsters quem vai «criar Kosovars»?