Tortura

João Bernardo — 16 Fevereiro 2008

scalia_72dpicrop.jpgFala-se muito da abundância de decapitados na Revolução Francesa, e com efeito as guilhotinas contaram-se entre as máquinas mais usadas naquela época, mas é geralmente esquecido o facto de os revolucionários de 1789 terem suprimido a tortura. Até então os interrogatórios haviam sido acompanhados por sevícias, aliás rigorosamente codificadas, e os condenados à morte por razões políticas eram executados no meio dos maiores sofrimentos. Além disso, para que os assistentes não ouvissem as injúrias que os condenados gritavam, os patíbulos eram rodeados por várias fileiras de soldados que tocavam tambores. Tudo isto foi suprimido na Revolução Francesa. E como os membros da elite estavam habituados a falar nos salões e a discursar nas Academias, e evidentemente nas recém-criadas Assembleias, antes de colocarem o pescoço debaixo da lâmina os condenados propensos à oratória proferiam frases ou heróicas ou elegantes ou ambas as coisas, sem que houvesse tambores a abafar o som.

Recordei-me dessa época ao ler as declarações de um juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, Antonin Scalia, numa entrevista realizada pela BBC e parcialmente reproduzida num despacho da Associated Press com data de 12 de Fevereiro. Interrogado acerca do uso da tortura, o juiz Scalia recorreu ao estafado argumento de que ela se justifica para obter informações acerca de alguma bomba prestes a explodir, salvando assim a vida de numerosos inocentes. Digo que o argumento é estafado, por um lado porque ele é muito antigo, encontro-o já invocado por ditadores e chefes de polícia europeus na década de 1920; por outro lado porque muito raramente − se é que alguma vez − a tortura deu um sinal de alerta nessas circunstâncias, até porque os seus resultados podem não ser credíveis. Como geralmente a tortura não tem efeitos imediatos, ela costuma ser prolongada durante dias ou até semanas, quando não meses, e os polícias recorrem a esses métodos não para descobrir acontecimentos iminentes mas para obter informações acerca dos planos estratégicos de organizações políticas e para saber quem são os seus membros.

Disse o juiz Scalia, numa linguagem um tanto embrulhada: «Eu acho que, por mais improvável que isto seja, seria absurdo dizer que nós não podemos, por exemplo, enfiar-lhe alguma coisa debaixo das unhas ou esmurrar-lhe a cara. Seria absurdo dizer que não podemos fazer isto». Quanto a saber em que circunstâncias praticar a tortura e em que medida praticá-la, a resposta deste juiz do Supremo Tribunal foi evasiva. «Até que ponto deve ser iminente a ameaça? E até que ponto pode ser cruel a dor a infligir? Eu acho que estas questões não são nada fáceis, para um lado ou para o outro». Antonin Scalia afirmou ainda que as práticas usadas nos interrogatórios policiais pelas autoridades norte-americanas não devem ser consideradas como tortura e, finalmente, a respeito dele mesmo declarou: «Eu sou muito afectivo».


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