Imigração – Uma lei que proteje as máfias

António Cunha — 30 Janeiro 2008

imigrantesbarco.jpgDo caso dos 23 cidadãos marroquinos que acabaram detidos no Centro de Instalação Temporária do Porto há várias ilações a tirar: sobre a lei de imigração, o papel do governo de Sócrates, a figura do ministro Rui Pereira, e, enfim, sobre o ambiente geral em que Portugal está mergulhado.

Comecemos pela lei. No seu articulado lê-se que a imigração ilegal implica o repatriamento. Muito haveria para dizer sobre este princípio, sobre o direito que a história da humanidade consagra a todas as pessoas de se moverem livremente na busca de uma vida melhor, sobre o combate às causas verdadeiras das migrações África-Europa. Mas prossigamos.

Na lei lê-se também que a acção de deportação pode ser adiada, se os detidos colaborarem com as autoridades no desmantelamento da rede de tráfico de migrantes que os enviou para a Europa. Trata-se, note-se, do simples adiar da acção e não do seu cancelamento. Mal o ministro da Administração Interna (MAI) decida que já não são necessários à investigação, manda que sejam repatriados, leia-se, devolvidos para as mãos dos mafiosos que acabaram de denunciar. Se se quiser combater realmente as redes de imigração ilegal terá que se começar por incentivar a sua denúncia, oferecendo anonimato completo e autorização de residência aos que colaborarem.

Mas voltemos um pouco atrás. Ter-se-ão perguntado se não haveria engano quando, sabendo que vivemos no apregoado Estado de Direito, se afirmou que a decisão final é do ministro. Ter-se-ão perguntado bem, mas a verdade é que terá havido um golpe de Estado silencioso – e uma decisão que deveria ser judicial, legalmente fundamentada, com direito a defesa e recurso, é, afinal, administrativa, dependente do espírito momentâneo do MAI e da sua sensibilidade própria.
Uma lei destas, que protege as máfias e dá direitos discricionários ao governo, não pode continuar a existir.

Mas este caso pôs, ainda, a nu a sensibilidade própria de Rui Pereira, da qual dependia, muito provavelmente, a diferença entre a vida e a morte de muitos deles. Portugal preparava-se para prender os 23, sacar-lhes a informação que considerasse necessária e repatriá-los, no maior dos secretismos. Ouviríamos depois um comunicado onde se louvaria a atitude firme e pronta do executivo. Mas o tiro saiu-lhes pela culatra.

Várias associações do Porto pediram para visitar os detidos, que estavam incomunicáveis. Nem resposta obtiveram. Só José Soeiro, e apenas por ser deputado, conseguiu chegar à fala com os marroquinos. Mesmo ele foi impedido de entrar duas vezes, a primeira, no dia 22, quando os primeiros foram secretamente deportados, a segunda no fim da vigília de solidariedade.

No caso da primeira leva de deportados, nem sequer as advogadas foram notificadas da expulsão. Chegou-se a dizer que o processo estava sob “Segredo de Estado”. Aos detidos chegou a ser dito, por pessoal do SEF, que eles seriam expulsos porque havia umas associações que estavam a fazer pressão para que isso acontecesse. Uma prática baixa. Ou, talvez, o assumir de que o barulho da sociedade civil dá mau aspecto, e o melhor é acabar com as coisas depressa, que se lixe a lei e o humanismo.

Estes cidadãos marroquinos, ao abrigo das mais recentes leis europeias de controlo de seres humanos, estão impedidos de tentar entrar no espaço europeu. A partir de agora não são apenas imigrantes ilegais. São pessoas banidas da UE, com fichas individuais centralizadas e disponíveis a todas as forças policiais do espaço Schengen, com possibilidade de virem a fazer parte da grande base de dados de indivíduos impedidos de entrar na “civilização ocidental”. Irão voltar, como já disseram que fariam, mais fragilizados, dando, de novo, dinheiro às máfias do tráfico humano, correndo, mais uma vez, risco de vida.

Portugal é, neste momento, um país onde há associações de imigrantes que se solidarizam com os marroquinos detidos e deportados, cujos membros aparecem nas mobilizações, mas que não subscrevem oficialmente os textos que se vão lançando, porque têm medo de represálias. São associações com ligações a vários níveis do Estado e que preferem não assinar coisas que
critiquem algum aspecto da actuação governamental. Sócrates conseguiu.

Mas é também o país do jornalismo domesticado onde não há perguntas incómodas, a terra onde um profissional da informação está impedido de comunicar com os detidos e não protesta contra esse facto. Não se digna, sequer, a levantar a questão.


Comentários dos leitores

Rodolfo 31/1/2008, 11:56

Tive um amigo que foi tentar uma vida melhor [em Portugal] e que ficou tão abalado com a sua prisão e deportação que, quando de volta ao Brasil, acabou se convertendo num radical de uma seita religiosa - tamanho o impacto que a deportação lhe causou. Justamente um brasileiro cujo país teve as suas terras e seu povo saqueado por Portugal durante séculos. O pior é que o dito começou a reverter o seu ódio às autoridades portuguesas em agressões a portugueses no Brasil.


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