O Bloco na esfera do poder

6 Setembro 2007

O acordo entre o PS e o BE para a Câmara Municipal de Lisboa tem dois efeitos políticos imediatos: ajudar a viabilizar uma maioria que António Costa não obteve nas urnas; e dar a Sócrates a (possível) aura de esquerda de que precisa para levar a termo a sua governação de direita. Nada de comparável com o que, em resultado das medidas concretas do acordo, se possa esperar para Lisboa propriamente dita.

Quanto à Câmara, o essencial do entendimento reside na obrigatoriedade de o BE aprovar os planos e os orçamentos para os dois anos que dura o mandato, bem como as medidas de saneamento financeiro. São esses os instrumentos, primeiros e decisivos, de que o PS precisa para agir em Lisboa. Percebe-se que, tendo o BE aceite esse compromisso de base, o PS tenha por seu lado correspondido com a aceitação de umas quantas medidas cuja enunciação até parece encaminhar o novo executivo num rumo diferente.
Acontece, porém, que as medidas que o BE “exigiu” do PS não são de aplicação imediata, nem a sua realização decorre de um simples acordo entre partidos – ao contrário da aprovação dos planos, dos orçamentos e das medidas de saneamento financeiro. Há portanto aqui, desde logo, um desequilíbrio entre as contrapartidas que o tempo se encarregará de evidenciar.
Mais. Como o vereador do Bloco não chega para dar maioria ao PS, sempre que António Costa precisar de negociar com outras forças os votos que lhe faltam colocará o BE entre a espada e a parede: ou aceita as condições dos entendimentos com terceiros, ou rompe o acordo agora firmado.

Não falando de coisas que podem ser dadas de barato (como a rede ciclável, ou os eléctricos até à Expo), é possível admitir-se que, em limite, uma ou outra das medidas acordadas faça algum caminho. Por exemplo, o caso da prioridade à renovação do património edificado existente, em detrimento da construção nova; ou do propósito de retirar da alçada da Administração do Porto de Lisboa os terrenos da faixa ribeirinha. Mas nada disto chega sequer para dar estatura reformista ao acordo.
Mesmo que algum destes propósitos vá avante, isso decorrerá, na verdade, do facto de existirem, já hoje, pressões de importantes sectores do capital para que assim seja. No caso da renovação urbana, por se temer que o excesso de construção nova adense a nuvem de um crash dos negócios; e por se esperar que uma limitação administrativa à construção nova provoque uma revalorização da propriedade imobiliária degradada e envelhecida, especialmente nas zonas centrais. No caso do porto de Lisboa, por serem os terrenos da faixa ribeirinha dos melhores que restam à cidade para operações de grande investimento.
Ambas as situações interessam, como bem se percebe, ao poderosíssimo capital da construção e da finança. Nenhuma viragem “à esquerda” estará pois em causa.

Contudo, o destino da maioria das medidas do acordo será esbarrar com obstáculos intransponíveis no actual quadro de forças. Alterar o sistema de transportes, reformular o ordenamento urbanístico da cidade, intervir nos preços da construção, pôr travões à especulação fundiária, criar condições para trazer moradores para o centro, impor quotas para habitação de baixos custos… são medidas que, não sendo especialmente radicais (e daí parecerem ao alcance de uma “boa governança”), mexem, contudo, com a própria estrutura das forças económicas que determinam o crescimento de Lisboa. A questão não está, portanto, na qualidade ou na novidade técnica das propostas, mas na força política para as aplicar. É por este motivo que todos os planos coerentes com o interesse colectivo representam escolhos para a especulação e são, por isso mesmo, postos de lado ou torcidos ao jeito dos interesses privados em jogo. Levar tais medidas à prática exigiria uma força política de que o BE não dispõe (nem toda a esquerda junta) e uma vontade contrária à do PS.

Para além do que está no acordo importa ainda o que não está no acordo. Os grandes, e primeiros, problemas da cidade conhecidos de há muito (que o programa eleitoral do BE refere) estão omissos ou foram grandemente aligeirados no texto do acordo.
Eis um: Lisboa como autarquia é hoje em boa medida uma ficção, uma vez que os seus problemas de fundo são os de uma área metropolitana não com os 550 mil habitantes da cidade, mas com 2,5 milhões; não delimitada pelas fronteiras do concelho mas abrangendo o arco Cascais-Vila Franca de Xira-Setúbal. Transportes públicos, habitação, espaços de lazer e tudo o mais decorre da relação de Lisboa com esta vasta região. Não o considerar, é tomar o caos como definitivo.
Eis outro: mesmo no perímetro concelhio, são as zonas de bairros periféricos e de bairros antigos, onde mora a maioria do meio milhão de lisboetas, que têm as mais graves carências de toda a espécie. Não serão as medidas para a frente ribeirinha nem o corredor verde até Monsanto que as resolverão.
Como é aqui que está o nó dos problemas, sem os enfrentar fica o essencial por tratar.

Em suma, no plano da mera eficácia reformista, as propostas do acordo que se mostram viáveis – ou incidem sobre coisas menores ou vão ao encontro de interesses que aguardam a sua oportunidade. Quanto às que tocam questões mais fundas, falta-lhes a base política necessária para as concretizar. Nem podia ser de outro modo, porque os votos que elegeram Sá Fernandes não constituem uma força de massas que permita alterar as regras do jogo. Para compreender isto, bastava, de resto, tomar a sério o facto de todos os concorrentes, incluindo o BE, terem perdido eleitores e de o actual poder municipal resultar de uma abstenção recorde.

Perante isto, mais sobressai o preço negativo do acordo no terreno político geral. A esquerda não só não ganha nada com ele, como perde. Não ganha, porque, como vimos, nada de importante irá avançar no simples plano das reformas essenciais para a população e para a cidade; e perde na medida em que o acordo, indirectamente, passa uma declaração de confiança ao PS e ao governo de Sócrates. Amarrado pelo acordo, o Bloco vai ter de poupar Sócrates para não chocar Costa, e vice-versa.
Uma oposição de esquerda, pelo contrário, só teria a ganhar com a denúncia do que, seguramente, vai desenrolar-se em Lisboa e no país; porque o PS não vai alterar nem a política dos seus antecessores na Câmara, nem a que ele próprio tem levado a cabo para todo o país. Não é essa, aliás, a lição principal da maioria absoluta obtida pelo PS nas últimas legislativas?

Iludido com a força que julga ter no quadro, muito dividido, das forças eleitas para a Câmara, o BE partiu para um acordo que tem por desiderato colocá-lo na esfera do poder. Para já, no que respeita a governar Lisboa, mais tarde, eventualmente, no que toca a governar o país. Porque – isso é inequívoco – o BE deu, com o acordo, um sinal de que está pronto para alianças mais substanciais. Este passo significa que o Bloco vai ter, daqui por diante, de ponderar ainda mais o que diz e o que propõe. Vai ter de abandonar o ataque às bases do sistema político, económico e social, e ser mais “positivo” e “construtivo”. As tensões entre as tendências que acham que se “avançou pouco” e as que pensam que se foi longe demais são inevitáveis. E é da experiência que, em situações de aproximação ao poder, ganham terreno as forças capazes de “demonstrar” que, havendo êxito, ele é fruto dessa aproximação; e, havendo insucessos ou ganhos políticos limitados, eles são resultado de “radicalismo” remanescente, só corrigível com novos gestos de aproximação e de participação no poder.
A postura de força política “alternativa ao PS” que o BE foi difundindo de si próprio significa, à luz da presente trajectória, não propriamente a disposição para atacar a partir de fora, sem compromisso, o sistema de que o PS é hoje o principal gestor – mas a disposição para ocupar o espaço deixado vago, à esquerda imediata do PS, pela deslocação deste para a direita.


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