Nós, iconoclastas

António Louçã — 19 Junho 2020

Com uma pomposa indignação mais própria do conselheiro Acácio, clamaram vários políticos da nossa praça contra a vandalização de uma estátua do Padre António Vieira. O clamor pretendia desviar as atenções do racismo, o verdadeiro problema que mobiliza centenas de milhares de manifestantes em todo o mundo.

No coro acaciano fez-se ouvir o habitual argumento de Portugal não ser “um país racista”. Mas em que país não se ouve o mesmo argumento, aplicado ao caso respectivo? A burguesia portuguesa criou um império colonial e esse império combinou sempre instrumentos diversos de dominação: por um lado, as contrapartidas económicas e a corrupção de elites locais, por outro o proselitismo religioso e, enfim, o instrumento decisivo da coação militar.

Algumas das campanhas militares portuguesas nas colónias foram verdadeiramente genocidas — fundamentalmente, nem melhores nem piores que as de outras potências coloniais. A guerra colonial de 1961-1974 está recheada de crimes contra a humanidade.

O racismo contra imigrantes das antigas colónias prolonga hoje esse espírito genocida e enxerta-se na hierarquia de galinheiro que, independentemente das idiossincrasias históricas, o capitalismo tende a criar entre trabalhadores metropolitanos e imigrantes, para melhor dividir e reinar.

Confrontados com esta realidade, os nossos virtuosos acacianos rapidamente viram de bordo e replicam: “Mas as estátuas referem-se a outros tempos, com outros valores. O que nós condenamos hoje, não era condenável naqueles tempos”.

É verdade que as ideias dominantes de uma época são as ideias da sua classe dominante. A burguesia de hoje adoptou alguma retórica humanitária que era inteiramente ignorada pela burguesia da expansão colonial. Mas isso não quer dizer que “aqueles tempos” justifiquem tudo. Quando os olhamos, podemos sempre escolher o ponto de vista dos escravos (geralmente silenciado) ou o ponto de vista dos traficantes de escravos (geralmente propagandeado com meios importantes, incluindo o recurso a escultores mercenários da época).

Cada vez mais encurralados, os acacianos lançam mão de um outro recurso: “Podemos não gostar dela, mas é a nossa História. As estátuas são documentos e testemunhos de outra época. Apagar os testemunhos é querer apagar a História, como se ela não tivesse existido”.

Ora, as estátuas não são meros documentos guardados no recato de um arquivo. Elas homenageiam os seus modelos e fazem-no geralmente na praça pública. E, como a História universal é uma história de infâmia, são as estátuas de celerados e patifes que dominam o espaço público. Quase não há um só que possa ser olhado com simpatia.

Se a História foi deixando as suas marcas nas cidades, as viragens da mesma História foram, por vezes, apagando essas marcas. E não venham, lá por isso, dizer-nos que revolução é sinónimo de vandalismo. Não se lembram de viragens contra-revolucionárias, como foi a invasão do Iraque? Aí, não só as tropas norte-americanas derrubaram todas as estátuas de Saddam Hussein, como vandalizaram o museu de Bagdade, onde pilharam relíquias insubstituíveis da civilização mesopotâmica. E as viragens que não são revoluções nem contra-revoluções, como a ocupação da Alemanha nazi por tropas aliadas? Também aí foram removidas todas as estátuas de Hitler. E alguém se lembraria que pedir aos vencedores que deixassem no seu lugar as estátuas de Saddam ou de Hitler, por fazerem “parte da História” (que faziam, indubitavelmente)?

Esgotado também o argumento arqueológico, os conselheiros Acácios nossos contemporâneos já não continuam a acompanhar a discussão, mas ainda há os mais modernos e sofisticados objectores às manifestações antirracistas, que esgrimem o argumento estético: “Os símbolos do racismo e do imperialismo podem ser execráveis, mas, se todos os monumentos tiverem de ser politicamente correctos, não ficará monumento algum. Se formos derrubar os monumentos todos, as nossas cidades vão tornar-se dormitórios desolados, sem nada que as embeleze”.

Era a estátua do traficante de escravos atirada ao charco em Bristol uma obra de valor estético, que embelezava a cidade? Podia até ser. O mercenário contratado para esculpi-la terá sido, suponhamos, um artista talentoso (uma coisa não impede a outra). Mas ainda que a estátua fosse uma obra-prima, só haveria uma coisa a dizer: o escultor que queira imortalizar as suas obras-primas andará bem avisado em não as dedicar à glória dos traficantes de escravos. Perante uma estátua que homenageava um criminoso, os manifestantes de Bristol não pararam a debater o valor estético da obra.

O socialismo não destruiria certamente os Budas de Pamian, como fez o obscurantismo taliban, e preservaria cuidadosamente as pirâmides do Egipto — embora ambos sejam monumentos feitos à custa de trabalho escravo. O socialismo poderia até deixar intactas as estátuas de grandes patifes, que as gerações futuras contemplariam como vestígio sinistro da “pré-história sangrenta da humanidade”, no dizer de Marx.

Mas o que o socialismo poderá fazer um dia é muito diferente daquilo que se faz no calor das revoluções. Estas, como todas as viragens históricas, derrubam estátuas que eram símbolos do poder anterior. Derrubam as estátuas de celerados e patifes sem olharem aos méritos do artista e podem até derrubar as estátuas de figuras estimáveis, sem olharem ao rigor histórico. No colapso dos regimes do leste europeu, houve manifestantes a derrubarem estátuas de Lenine, porque elas se tinham tornado entretanto o símbolo de um poder opressivo que negava e caricaturava o leninismo. Agora, alguns manifestantes antirracistas terão borrado de tinta vermelha a estátua do padre António Vieira, defensor dos índios e adversário da Inquisição, porque a estátua é uma tentativa desastrada de reabilitar o colonialismo.

As manifestações pelas vidas negras são um grande movimento. Neste contexto, há episódios isolados de vandalismo (assaltos a lojas) e episódios frequentes de iconoclastia revolucionária. Mas o movimento é, no seu conjunto, o que é. Quando o dedo aponta para a lua, só o tolo fica a olhar para o dedo.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 20/6/2020, 13:22

HISTÓRIA
O texto acima e em minha opinião condescendente, veio na hora certa: há acontecimentos que não se podem deixar em claro, sobretudo quando nós, portugueses, temos os maus hábito e costume de os meter "debaixo do tapete" e à maneira do "dizer" do FMI do Zé Mário: "não é nada comigo, não é nada comigo..."
1- Fomos nós, portugueses - europeus de gema... - que há cerca de 500 anos atrás iniciámos o "comércio negreiro" para o "NOVO MUNDO" por exigência do "trabalhinho braçal" que consolidou o conhecido lema "o trabalho é bom pró preto".
Sabemos hoje que a "chegada de Colombo à América" foi um "equívoco": as "DESCOBERTAS" tinham em vista um mais próximo "caminho para a Índia" do que a "rota do Cabo". A velha teoria do Grego Aristarco de Samos - a Heliocêntrica - já se ia tornando presente e Cristóvão Colombo deduziu - e com razão - que se poderia ir à India pelo Ocidente sem o mau encontro com o "perigoso" Adamastor. Só que desconhecia que entre a Europa e a Ásia havia - quando se caminha por ocidente - um outro Continente: o Americano. Essa novidade será contada - no seu regresso - pelo próprio Colombo ao nosso "Perfeito" Rei D. João II, quando subiu o Tejo para com ele se encontrar e antes de ancorar em porto Espanhol.
2 - Na "descoberta" do "Novo Mundo", rapidamente se descobriram "vantagens" que a sua enorme extensão de "terras" e clima variado permitia. E uma delas - e a maior - era as "riquezas" que poderia proporcionar. O "Meio de Produção" - a Terra - estava "descoberto": só faltava a "FORÇA de TRABALHO". Mas esta também por lá havia: o Índio Americano.
3 - Daí que uma empreitada se impunha agora: "meter" na "cabeça" do Índio os "valores" do "trabalho obediente" (escravo) e aí os Jesuítas tinham um trabalho árduo de "catequese" a concretizar: isto tudo e curiosamente, 1500 anos depois de CRISTO ensinar QUE TODOS NÓS SOMOS IRMÃOS o que só por si dá conta de algumas das intenções dos nossos "combatentes do Anacronismo" onde muitos deles e curiosamente se dizem Foucaultianos.
4 - Mas a "empreitada" para "catequizar" o Índio e dar-lhe o "destino" que o Tuga (e o europeu) lhe queria dar - mão-de-obra escrava no plantio das novas "especiarias" do Novo Mundo como era o "açúcar" - falhou. E aí entra o nosso Vieira - que se apercebe, com mérito, que o "índio" não "serve" - defendendo o Índio nativo - "resistente" e por isso "perturbador" da produção - ao mesmo tempo que silencia o "preto" vindo de longe da sua terra, desenraizado e por isso - e ao contrário do índio local - sem qualquer apoio da sua "comunidade" africana. Ao defender o Índio, Vieira fechou os olhos e abria as portas à importação do trabalho do "preto" de África.
5 - O comércio negreiro "floresceu" em grande: uma verdadeira "janela de oportunidade" onde Portugal - Nação de Cristo (um anti-escravista contra Roma) - esteve aí na "linha da frente". As estatísticas valem aqui o que valem mas há quem afirme que neste HOLOCAUSTO AFRICANO estão em jogo, pelo menos, 12 milhões - número astronómico para a população da época, tendo em conta a capacidade de transporte - e onde 38,5% destes foram destinados à América Portuguesa (Brasil). É obra (!), mas nem toda a "obra" deve ser branqueada. Haja maneiras...
6 - A maior parte da nossa História é uma História Imperial que "terminou" com seu último grande defensor Salazar - um produto do CADC de Coimbra - que para isso impôs, com sua "estratégia", meio século de adequada ideologia fascista. Mas julgo que muito falta ainda desvendar da nossa História o que leva a que uma "simples" pintura "vermelha" de acusação de "branqueamento" a um importante membro da "célebre" Companhia de Jesus e defensor do "V Império", crie um burburinho de "todo o tamanho".
Os nossos Historiadores - salvo raras e honrosas excepções - deveriam aprender a rezar o "acto de contrição".

afonsomanuelgoncalves 20/6/2020, 17:32

A propósito dos iincindentes da estatuária "histórica" saliento a afirmação corajosa de Lídia Jorge feita no DN deste fim de semana. Disse ela: . É claro que esta satisfação pôe a nu a hipócrisia dos seus correlioginarios e além disso erra o alvo. Esqueceu-se a D^ Lídia que Lenine repousa num mausuléu em Moscovo edificado em sua homenagem. Por mim fico a aguardar que a D.^ Lídia ganhe o próximo Booker Prize.

Isabel Maria Viana Moço Martins Alves 24/2/2021, 6:03

Óptimo.


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