Tribuna parlamentar ou pântano parlamentar?

António Louçã — 4 Dezembro 2016

BEO folhetim de faca e alguidar sobre as declarações de rendimentos do administradores da Caixa concluiu-se da forma mais inglória e burlesca, com a demissão de António Domingues. É caso para dizer: não havia necessidade de toda esta ópera bufa, de semanas a fio, entrega-não-entrega, para acabar assim em tão triste pio.

Mais uma vez, não foi mérito do PS, que até ao último instante tentou amparar as pretensões secretistas dos administradores, e com isso ofereceu à direita um flanco vulnerável, de que ela anda bem precisada. Quando o PSD propôs uma votação parlamentar que reafirmasse a obrigação de entrega das declarações de rendimentos, logo a bancada do PS anunciou o voto contra, com o argumento sofístico de que essa obrigação já está na lei e, portanto, não vale a pena andar a repetir o que já lá está.

A prova de que valia a pena era que, a pretexto de interpretações diversas sobre o “espírito da lei”, os administradores nunca mais entregavam coisa nenhuma. Mas disso não fez caso o PS, empenhado em lançar a torto e a direito cortinas de fumo sobre o “tema prioritário” da recapitalização da Caixa. E disso também não fez caso o PCP, que invocando o mesmo argumento votou contra a reafirmação do dever dos administradores.

Se o parlamento, afinal, reafirmou claramente esse dever de entrega da declaração de rendimentos, não foi portanto um mérito do PS, ou tão-pouco um mérito, em geral, dos seus parceiros da “geringonça”. Esta dividiu-se na votação e só o BE se juntou à reclamação de transparência. A divisão da maioria nesta circunstância foi tão irritante que alguma imprensa lhe atribuiu a decisão final de Domingues: ao sentir que ia faltar-lhe um apoio que considerava, até aí, favas contadas, lá acabou por bater com a porta.
Quer isto dizer que o BE, ao votar contra o privilégio secretista dos administradores, pode atribuir-se a si próprio os méritos que faltaram a socialistas e comunistas em desatar o nó da polémica? De certo modo sim, mas essa andorinha está muito longe de anunciar a primavera.

Domingues foi derrubado por um pronunciamento parlamentar e a luta contra as suas pretensões absurdas não foi mais do que um episódio de bastidores. O mais que se fez com ela foi transmitir os seus ecos mortiços a uma opinião pública indiferente. A essa opinião pública, nada se pediu que ela própria fizesse para pôr cobro à indigna peixeirada da tribo interminável de administradores da Caixa, pagos a peso de ouro. O balanço final não é o de um episódio que tenha contribuído para uma cultura de exigência, de mobilização e de intervenção da opinião pública.

Quando muito, o BE ganhou com esta demonstração de independência um pouco mais de espaço negocial. Da próxima vez que o PS queira conduzir a “sua” maioria, como favas contadas, a uma votação protectora de banqueiros, talvez tenha aprendido que a “geringonça” é isso mesmo, e não um regimento norte-coreano. E, tendo aprendido a lição, talvez esteja disposto a ceder ao BE mais tarifas sociais da energia, mais direitos de adopção homoparentais, menos financiamento público de colégios privados. Mas essa maior flexibilidade arrancada ao PS em sideshows não deixará de ter um efeito perverso: agravar a ilusão de que o parlamento possa ser alguma coisa mais do que uma tribuna, de que aí se possa decidir coisas importantes e de que elas possam ser decididas sem a pressão da rua. O peso que ganhou o BE arrisca-se a afundá-lo um pouco mais no pântano parlamentar.


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