Garzón, um herói dos direitos humanos?

A. Chalmeta, Diagonal / Pedro Goulart — 25 Maio 2010

baltazargarzon_72.jpgRecentemente, no Estado espanhol, foram dirigidos poderosos ataques contra o juiz Baltazar Garzón, por este ter tentado investigar os crimes cometidos durante a ditadura franquista. Parte da esquerda espanhola e dos movimentos sociais mobilizaram-se a seu favor, tentando defendê-lo das manobras judiciais da direita (que visavam afastá-lo) e assumindo-se em apoio das vítimas do franquismo. No país vizinho, houve diversas manifestações e petições de intelectuais em sua defesa, mas considerando apenas este lado da acção do “juiz estrela”. Também, na mesma linha, surgiu em Portugal uma petição a seu favor. Entretanto, Garzón era suspenso das suas funções pelo Conselho Geral do Poder Judiciário.

Sabendo tudo o que aqui estava em jogo, nomeadamente as cumplicidades de Baltasar Garzón com a tortura praticada pelo Estado espanhol, lamenta-se que parte significativa dos nossos democratas e intelectuais ibéricos tenha tentado transformar Garzón num herói, mostrando, uma vez mais, a sua visão limitada, preconceituosa e selectiva (será que a tortura de alegados militantes políticos radicais não é um crime?) em relação aos direitos humanos que dizem defender. Eles, habitualmente, só se preocupam com a repressão quando ela chega à sua gente ou, então, apenas com alguns presos e indivíduos, conforme a cor dos regimes políticos.

Vozes conhecidas da defesa dos direitos humanos no Estado espanhol alertaram então para o paradoxo de se apresentar este juiz como um protector dos direitos humanos. O artigo que a seguir reproduzimos, publicado no n.º 125 do jornal Diagonal (www.diagonalperiodico.net), coloca bem as questões em relação ao outro lado do problema, por muitos omitido, ajudando a melhor compreender a questão.

“Não podemos deixar de nos opor à nomeação do juiz Baltasar Garzón como um defensor dos direitos humanos, quando a sua actuação foi, enquanto era favorável aos seus interesses, idêntica ao que agora denuncia”. Com esta contundente declaração, termina o manifesto intitulado O Paradoxo de Garzón, lançado em meados de Abril por 26 conhecidos activistas da defesa dos direitos humanos do Estado espanhol.

De acordo com Jorge del Cura, do Centro Madrileno de Documentação contra a Tortura, e um dos signatários do manifesto “é necessário e essencial investigar cada uma das responsabilidades dos crimes do regime franquista, mas esta pesquisa não pode servir para avalizar e dar um verniz democrático a um tribunal, como a Audiência Nacional (AN)”. O manifesto, acrescenta ele, “surge face ao assombro e indignação de ver Garzón apresentado como um herói dos direitos humanos, ao mesmo tempo que se esconde, ou silencia, o seu papel e, sobretudo, o da Audiência Nacional no retrocesso das liberdades no Estado espanhol”.

É que os nomes do juiz estrela e o deste tribunal especial estão intimamente ligados desde que, em 1988, Garzón foi incorporado na Audiência Nacional como juiz instrutor. Uma longa carreira durante a qual Garzón marcou aí o seu estilo. “Se entendermos o juiz instrutor como garante dos direitos fundamentais dos investigados, Garzón não fica aprovado: não materializa o seu papel de supervisão do trabalho policial e limita-se a reproduzir os relatórios da polícia nos autos judiciais”, descreve Benet Sallèles, advogado catalão que teve de lidar em diferentes ocasiões com os sumários de culpa do juiz. “Utilizou sempre um modelo totalmente inquisitorial, dificultando muito o trabalho das defesas. Parece que agora lhe aconteceu algo parecido”.

O titular do julgado n.º 5 não foi mais um juiz da AN. Para o advogado basco Julen Arzuaga, de Behatokia, um Observatório Basco de Direitos Humanos, e um dos impulsionadores do manifesto crítico de Garzón, este é o criador da interpretação extensiva do “tudo é ETA”. Ele delineou o uso ambíguo do direito penal e da sua brutal intromissão na vida política pública. Ele é responsável por toda esta linha de intervenção que implica a suspensão dos direitos políticos de um sector importante da sociedade basca”. E fê-lo, segundo Arzuaga, “promovendo instruções criminais de motivação política e recorrendo ao direito penal do inimigo, esse direito que julga, condena e encarcera, não pelo que se fez, mas pelo que se é e pensa”.
E o juiz foi marcando a linha. Como diz Jorge del Cura, “a AN, com Garzón na liderança, acelerava, exigia e dava um verniz aparentemente legal às alterações para endurecer a legislação a todo o momento”.

A purga da 4.ª Secção
O que aconteceu com os juízes da 4ª Secção da AN é um bom exemplo do preconceito que Garzón imprimiu. O veterano Augusto Gil Matamala, ex-presidente da Associação de Advogados Democratas Europeus, recorda este caso: “Garzón é um juiz instrutor com enormes poderes, mas pode recorrer-se das suas decisões e apelar a um nível jurisdicional superior: a 4ª Secção Criminal da Audiência. Dois juízes não se deixaram enganar pela visão desorbitada de Garzón em relação ao tecido associativo basco e, desde o final dos anos 90, muitos processos foram revogados. Em seguida, os juízes foram objecto de uma campanha dos media para os desacreditar”.

Posteriormente, em Fevereiro de 2002, num caso confuso, a 4ª Secção libertou um traficante, que acabou por fugir. Os seus juízes foram rapidamente processados, suspensos e inabilitados por seis meses. Após a drástica sanção, nos corredores do tribunal a ladainha dos seus funcionários era a mesma: “Cotino (então director-geral da polícia) e Garzón tomaram a AN”. Em 2004, o Supremo considerou sem razão a suspensão dos magistrados e estes foram reabilitados e reintegrados na Audiência.

“Mas, diz Gil Matamala, o estrago já estava feito: desde então, nenhuma Secção da AN ousa questionar as decisões de Garzón”. Nesta domina agora Fernández: “Sem lembrar aquela batalha seria impossível compreender hoje as instruções e decisões como a do macroprocesso 18/98 (*), o encerramento dos jornais Egin e Egunkaria ou a equiparação da desobediência civil ao terrorismo”.

Impassível perante a tortura
Mas se há uma crítica ao juiz que se repete, é a sua atitude para com as alegações de tortura. De acordo com Del Cura “são muitos os casos de pessoas que, quando conduzidos a Garzón, relataram terem sido torturados e/ou maltratados durante os períodos de detenção incomunicável. E a resposta dele foi sempre a mesma: em nenhum caso foi ordenado investigar ou remeter as queixas para o tribunal competente. E deu como boas todas as declarações”.

Com a sua negligência face às acusações de abuso policial, Garzón ganhou a reprovação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Em 1992, 30 nacionalistas catalães que foram presos na véspera dos Jogos Olímpicos e aos quais foi aplicada a legislação anti-terrorista, reclamaram ao juiz que haviam sido torturados sem que este fizesse alguma coisa. Depois de um longo processo, em 2004, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sentenciou que o inquérito de Garzón sobre a tortura não tinha sido “suficientemente profundo e eficaz”.

Sallèles recorda outro episódio dilacerante: “Era um menino que ele trouxe de Guantánamo para julgar por terrorismo. Naquele momento, não parecia colocar qualquer problema a Garzon o facto de o menino vir de lá. O acusado foi absolvido pelo Supremo Tribunal, que negou a validade deste tipo de processo. No entanto, ele, como juiz, nada tinha feito”.
Para Arzuaga, “julgam Garzón precisamente com uma acusação desproporcionada, com conotações políticas e resultante de uma interpretação extensiva da lei. Essa é a justiça espanhola. Ele contribuiu para que se pudesse chegar aonde se chegou hoje”.

(*) O enorme processo 18/19, aberto em 1998, em que Baltasar Garzon pretendia julgar “toda a estrutura da ETA”, envolveu um jornal (Egin) e uma rádio (Egin Irratia), várias empresas e uma fundação. Foram, então, processadas 55 pessoas.


Comentários dos leitores

A CHISPA ! 26/5/2010, 21:25

Muito bom, parabéns pelo teu excelente artigo Pedro Goulart.

"achispavermelha.blogspot.com"
A CHISPA !

carlos silva 23/6/2010, 23:26

Este documento demonstra que no estado espanhol, para álém da realidade explícita, ainda que limitada, persiste todavia implícitamente, uma outra face dessa mesma realidade, que advem do erro de alguma esquerda light ter a seu tempo confundido a morte de Franco com a morte do franquismo. Pois aí está vivo e coleando ...não perdoando nem ao seu mais fiel servidor, que pise la raia olvidando el hecho de que ellos, los franquistas, son quienes cortan el bacalao. Eis pois uma manifestação caracteristica do pensamento elitista (?) da Direita que agora patalea.
Poderia dizer que dá pena mas ...não seria verdade.


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