Não, o Governo não vive numa bolha

Manuel Raposo — 9 Dezembro 2025

Manifestações e concentrações estão previstas em vários pontos do país

Perante uma plateia de empresários da banca e do sector exportador (Millennium Portugal Exportador), o primeiro-ministro proferiu, no início de dezembro, uma discursata, tão cínica como patética, com o propósito de enaltecer as virtudes do novo pacote laboral, demonstrar a visão política do Governo e desmerecer as razões da greve geral convocada justamente contra esse mesmo pacote. Para ilustrar a bondade da sua política, lançou para o ar promessas de subida vertiginosa dos salários e de progresso económico que ninguém de bom senso (a começar pelos representantes patronais) leva a sério – como ninguém levou a sério as proverbiais promessas de bacalhau a pataco dos políticos da Primeira República.

A greve geral tem motivações políticas, como acusou Montenegro?

É claro que sim. A natureza das alterações à legislação laboral está bem identificada: um ataque às já escassas defesas dos trabalhadores e das organizações sindicais contra a arbitrariedade patronal. Se Montenegro tem toda a razão em ver na greve geral uma resposta política contra a conduta do Governo, mais razão têm os trabalhadores em ver nas propostas do Governo uma motivação política, da parte do poder e do patronato, para os reduzir a uma massa de gente sem capacidade de reacção. O sentido da greve geral é político por ser uma resposta de classe da parte dos trabalhadores a uma ofensiva igualmente de classe da parte do patronato e do governo que o serve.

O que significa trabalhadores “flexíveis” e “colaborantes”?

Segundo o primeiro-ministro, os trabalhadores têm de contribuir para o “avanço do país” adoptando uma atitude “flexível” para que as respectivas empresas tenham sucesso e não fracassem. “É preciso que todos colaborem”, apela Montenegro. Percebe-se a ideia: quando os patrões têm boa carteira de encomendas, há toda a vantagem em contratar trabalhadores de forma expedita (aligeirando burocracias e controlo do Estado, ou mesmo tolerando a ilegalidade, que é o que acontece na prática); mas quando o negócio fraqueja, têm de ter a possibilidade de despedir sem reservas e a baixo custo, ou mesmo a custo zero. Portanto, nada de compromissos fixos para futuro no que respeita à contratação.

A “flexibilidade” e o espírito de “colaboração” que Montenegro cinicamente pede significam tentar convencer os trabalhadores a aceitarem de bom grado os despedimentos, a precariedade, a redução de salários, os aumentos de horários e dos ritmos de laboração e todas as demais violências nas condições de trabalho praticadas dentro das empresas. A “rigidez” de que patrões e Governo acusam a actual legislação é a capacidade que ainda existe da parte dos trabalhadores de resistirem aos propósitos patronais.

A ideia mítica que pretende equiparar a empresa a uma “família” de que todos são membros iguais e em que todos “colaboram” (nada de lutas de classes!), é uma espécie de neo-salazarismo adaptado ao Portugal democrático – filho, não de Abril, mas de Novembro.

Os salários só podem aumentar se aumentar a produção?

Ouve-se repetir até à náusea o dogma de que só produzindo mais se pode “distribuir” mais. O argumento serve a Montenegro e ao patronato para pressionar os trabalhadores e justificar as medidas draconianas avançadas pelo Governo. É claro e do senso comum que, havendo mais, mais se pode repartir. Mas esta afirmação geral mascara a desigualdade de poderes que caracteriza a sociedade real em que vivemos. É essa desigualdade, determinada pelo facto de uns terem propriedade, capital e as leis do seu lado, e outros não, que condiciona a forma e os montantes da repartição da riqueza produzida.

Em última análise, é a capacidade de luta dos trabalhadores que pode decidir sobre os montantes dos salários, das pensões e dos benefícios sociais que recebem, ou sobre as leis que regulam o trabalho. Sem este confronto de interesses, sem a luta do trabalho contra o capital, pode uma maior riqueza produzida beneficiar exclusivamente patrões, gestores e classes parasitas: é o que tem sucedido de há anos para cá, em que a produtividade do trabalho tem aumentado sempre mais do que os salários.

Inversamente, podem os trabalhadores arrancar benefícios que lhes melhorem a vida, mesmo na condição limite de não haver aumento de produção de riqueza – alterando, pela força da luta, as proporções de repartição da riqueza existente. Um exemplo deste caso está na nossa história após o 25 Abril de 1974. Em plena crise do petróleo (desencadeada em 1973), e apesar da desorganização da produção causada pela fuga e pela sabotagem de muitos patrões, as lutas dos trabalhadores conseguiram significativos aumentos salariais e francas melhorias de condições de trabalho. Em 1974 e 1975, a parte da massa salarial no rendimento nacional atingiu 52,3% e 63,5%, respectivamente, bem acima dos 47% de 1973.  Em contraste com esta evolução favorável – instalado o regime do 25 de novembro de 1975 e iniciada a repressão das organizações dos trabalhadores – aquelas percentagens começaram a baixar logo em 1976 (61,8%) até atingirem 49,1% em 1979, valor equivalente ao de 1970 (49,0%). (*)

Porquê agora a revisão da lei?

Numa altura em que o governo se vangloria de um crescimento económico superior à média europeia (que está em valores mínimos, praticamente estagnada), pergunta-se qual a pressa em rever a lei. Montenegro foi explícito: a boa oportunidade é justamente esta, e não quando a economia estiver em baixa. Conta ele (ou contava), deste modo, reduzir a oposição às medidas avançadas pelo Governo, apanhando os trabalhadores desmobilizados.

A convocação da greve geral atravessou-se-lhe no caminho. Os seus apaniguados na comunicação social desdobram-se em justificações sobre o carácter “provisório” da proposta do Governo – que está à discussão, que ainda pode ser alterada, que a greve é por isso inoportuna. Ao mesmo tempo, Montenegro e a ministra do Trabalho procuram explorar o tradicional lado colaborante da UGT, chamando-a a negociações sem nada dar em troca. Tudo na tentativa de enfraquecer a resposta da parte dos trabalhadores.

A pressa do Governo denota uma fraqueza. O crescimento económico português tem pés de barro. Assenta largamente no turismo, no baixo valor acrescentado da produção, em algum aumento do consumo interno favorecido pela redução de impostos. Depende dos baixos salários e do emprego precário. Não existe investimento significativo, nem púbico nem privado, que potencie a produção para futuro. Beneficiou da injecção de verbas enormes do PRR, que não vão repetir-se.

Ainda por cima, o contexto em que decorre mostra-se adverso. As principais economias da Europa estagnam ou afundam-se. Qualquer abalo no poder de compra pode arrasar o turismo e as exportações. As sanções à Rússia tornaram a energia muito mais cara e reduziram mercados. A inflação persiste e pode voltar a disparar. As exigências da NATO e o prolongar da guerra na Ucrânia absorvem verbas colossais que não são investidas na produção e empobrecem os países. A política norte-americana faz da Europa um vassalo sem que os eurocratas tenham capacidade de resposta. A UE desarticula-se e a Europa arrisca tornar-se um anão económico.

A revisão do código do trabalho antecipa estas ameaças de modo a dotar o capital de meios legais para esmagar a resistência dos trabalhadores se uma crise económica valente sobrevier. O propalado argumento de preparar o país para as inovações tecnológicas que estarão para vir ou para os efeitos da inteligência artificial, são fumo lançado sobre a discussão do verdadeiro problema: o confronto entre capital e trabalho.

O Governo e Montenegro “vivem numa bolha”?

Não é por desconhecimento da realidade do mundo do trabalho que o Governo avança com tamanha violência contra os direitos dos trabalhadores. É porque assume por inteiro e sem disfarce a sua condição de servidor do capital e do patronato. Quando Montenegro fala “do país” está a falar do mundo dos negócios – não por engano ou estreiteza de vistas, mas por escolha e por dever de ofício. Admitir o contrário, é dar-lhe um benefício que ele não merece. Nenhum governo – e este ainda menos, como está à vista – pode ser tomado como árbitro na contenda que opõe trabalhadores a patrões, sindicatos a confederações empresariais, salários a lucros.

As fantasias lançadas por Montenegro (com um desprezível ar de gozo) de querer proporcionar aos trabalhadores um salário mínimo de 1600 euros e um salário médio de 3000 euros – quando a realidade anda pela metade, e foi conquistada a pulso – só podem ser vistas como uma marca de carácter do homem, a acrescentar à sua função como político: um indivíduo sem pudor em prometer uma coisa e fazer outra. Ou, como disse dele um colega de partido impressionado com os negócios obscuros da Spinumviva: um videirinho.

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(*) Evolução salarial em Portugal na década de 70, José A. Pereirinha, ISE, 1980


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