Piratas das Caraíbas, versão D. J. Trump
Urbano de Campos — 4 Novembro 2025

Recuemos um mês. O Comité Nobel não ficou assim tão longe como se diz de laurear Donald Trump quando, em outubro, deu a palma da Paz a uma agente do imperialismo norte-americano. A venezuelana Corina Machado tem sido desde os tempos do carniceiro do Iraque Bush-filho, há mais de vinte anos, uma fiel mandatária dos EUA na sua fúria para derrubar o regime venezuelano, desde que Hugo Chávez assumiu o governo do país em 1999. Qualquer cheiro de poder popular, por muito elementar que seja, como é na Venezuela, tem garantido o ódio dos EUA – com Bush, Obama, Biden ou Trump.
Por amor à pátria…
Falhada a operação Guaidó iniciada em 2019 (lembram-se dele? o então proclamado presidente “legítimo” da Venezuela vive agora nos EUA), logo a operação Corina veio ao de cima em 2024. Na sua ânsia de mostrar fidelidade aos propósitos norte-americanos, agora com Trump ao leme, Corina não teve rebuço em apelar a Benjamim Netanyahu para, seguindo o método eficaz aplicado em Gaza e na Cisjordânia, ajudar a derrubar Nicolás Maduro.
Ao mesmo tempo, apoiou sem reservas a pirataria de Washington no mar das Caraíbas contra embarcações venezuelanas a pretexto do combate ao tráfico de droga – tráfico que é sobretudo um negócio norte-americano. Mais de quatro dezenas de pessoas foram mortas nos ataques levados a cabo pela marinha dos EUA sem que qualquer prova contra os visados fosse apresentada.
Num último rasgo do seu especial patriotismo, Corina Machado deu as boas vindas a uma intervenção militar dos EUA para derrubar o regime, dizendo acreditar que “a escalada que está a ter lugar é a única maneira de forçar Maduro a sair”.
Ameaça militar nua e crua
A escalada consiste no envio pelos EUA de consideráveis meios militares navais para as costas da Venezuela, ameaçando desta vez não apenas a Venezuela, mas também a Colômbia. Segundo várias fontes, as forças armadas dos EUA apressam a chegada de um grupo de combate constituído por um porta-aviões, destroieres, aviões e submarinos nucleares. O secretário de Estado Marco Rubio apela abertamente ao derrube de Maduro e também, já agora, do presidente Gustavo Petro da Colômbia – que tem sido um destacado acusador dos crimes de Israel na Palestina.
Esta ameaça militar que os EUA estão a desenrolar sem disfarce nas Caraíbas, para além de veemente repúdio e denúncia, merece uma descodificação.
Sinais de derrota política
No plano político, e de forma imediata, dá sinal do fracasso das sucessivas investidas para contrariar o apoio popular de que tem desfrutado, com altos e baixos, o regime inaugurado por Chávez. Significa isto que os candidatos promovidos pelos EUA, apesar de todos os meios postos ao seu dispor, não convencem as camadas populares venezuelanas – que certamente veem por detrás deles a presença imperialista de má memória.
O recurso à força bruta militar por parte de Washington é, neste sentido, um sinal de derrota política e da adoção, sem disfarces, da ilegalidade como meio de ação.
Uma vez mais, o petróleo como arma
No que toca a interesses materiais, há boas razões para o empenho dos EUA. A Venezuela detém uma das maiores reservas de petróleo do mundo. Dominar uma tal riqueza constituiria para os norte-americanos uma vantagem importante, não apenas pelo uso do recurso em si (muito mais barato e duradouro que o petróleo extraído nos próprios EUA), mas também pelo facto de poder constituir uma arma contra os seus adversários. Não se pode ignorar que a política mundial relativa à extração e comércio de petróleo é hoje substancialmente determinada pela OPEP e pela Rússia, não pelos EUA.
No mesmo sentido vai a ameaça recente de Trump de atacar militarmente a Nigéria, acusando-a de não defender capazmente os cristãos vítimas de atos terroristas –nomeadamente os praticados por células do Daesh, que os serviços secretos norte-americanos tanto acarinham onde e quando lhes convém. A Nigéria é o primeiro produtor de petróleo de África e possui as maiores reservas de gás natural do continente. Tal como a Venezuela, é membro da OPEP.
A invasão do Iraque em 2003, lembremos, foi acima de tudo uma tentativa dos EUA de exercer um controlo absoluto sobre o petróleo do Médio Oriente, no sentido de condicionar o crescimento económico dos seus concorrentes, entre eles a UE. Na altura, valeu o argumento das armas de destruição maciça, hoje, vale o pretexto do contrabando de droga das Caraíbas ou dos atentados terroristas em África.
Para lá do petróleo
Num outro plano ainda, colocam-se as questões designadas como geoestratégicas. Ou seja, a disputa mundial que o imperialismo trava com os seus adversários mais sérios – a Rússia, a China, os BRICS – no propósito, aliás com sinais de desespero, de amparar quanto possível o seu poder em queda.
Neste sentido, Trump parece querer dar novo fôlego a uma política de canhoneira que trata a América Latina como um quintal dos EUA. A forte presença económica da China em todo o continente americano, a integração e o interesse de vários países da região nos BRICS, e ainda os diversos acordos de cooperação, nomeadamente militares, da Rússia e da China com vários desses países – tudo isto soa, naturalmente, como uma ameaça às ambições imperialistas e ao domínio histórico que os EUA ali têm exercido.
Acontece que as debilidades relativas dos EUA no plano económico, as suas evidentes fraquezas políticas e até, se assim se pode dizer, o seu descrédito moral diante do resto do mundo, reduzem a capacidade de manobra do imperialismo. O poder de persuasão, sempre necessário para construir um poder hegemónico, esgota-se – e isso leva em linha reta ao uso da força bruta como último e desesperado recurso.
Vê-se isso na guerra conduzida no Médio Oriente pelo peão-de-brega israelita e vê-se agora na ameaça que os EUA fazem pairar sobre a Venezuela. Com uma diferença assinalável: o imperialismo não dispõe na América Latina de nenhum Netanyahu que faça por ele o “trabalho sujo” (como disse sem vergonha o chanceler alemão Merz). O mais parecido será o desvairado Javier Milei; mas mesmo esse teve de obter de Trump, em exclusivo, uma promessa de 20 mil milhões de dólares para atenuar o caos da economia argentina e assim virar a sorte do jogo eleitoral de 26 de outubro passado.
Por outro lado, a Venezuela, a Colômbia, a Bolívia ou o Brasil – pela extensão de território, pela população, pelos recursos – não são o Líbano ou a Palestina, sem desmerecer a bravura de libaneses e palestinos.
O pântano
Voltando às preciosidades do Nobel. Depois de Churchill ter sido distinguido com o galardão da literatura, tão merecido por ele como seria pelo autor destas linhas; depois de os dissidentes soviéticos terem sido igualmente premiados por serem, acima de tudo, dissidentes; depois de políticos torcionários israelitas terem sido louvados como bons samaritanos; depois de o papa João Paulo II quase ter sido laureado por ter ajudado ao “derrube pacífico” dos regimes do leste europeu; depois de Barack Obama, especializado em matar gente à distância, com drones, ter tido igualmente o seu prémio como homem de paz – não espanta muito que Corina Machado estivesse no topo da lista dos sábios de Oslo.
Mas, convenhamos, o nível está a baixar drasticamente. O que é também mais um sinal do pântano em que o Ocidente se afunda.