Aviso sobre as eleições de dia 12: O poder local não existe

Manuel Raposo — 9 Outubro 2025

Operações SAAL, julho 1974 – novembro 1975, a resposta popular à questão da habitação

Mais de 9 milhões de eleitores estão a ser chamados a escolher uns quantos milhares de autarcas que vão governar concelhos e freguesias em nome, assim se diz, dos interesses locais das populações. Afirma-se que não há outras eleições em que a relação dos eleitores com os eleitos seja tão próxima, e determinada por assuntos tão concretos. Mas sempre que se abre uma nova campanha eleitoral repetem-se as mesmas queixas da parte das populações que não vêem, décadas a fio, progresso digno desse nome nas suas condições de vida.

A avaliar por esta prova dos factos, a tal relação privilegiada entre eleitores e eleitos merece ser questionada, como será útil perguntar se o poder local (o poder de escolher e agir a partir da base, em autarcia) existe para além do nome.

As questões que a seguir se colocam são ingénuas. Mas o hábito de medir a democracia pela regularidade dos actos eleitorais está de tal modo arreigado que já ninguém se pergunta sobre questões tão elementares como, por exemplo, saber que tipo de poder é consagrado pelas eleições, quem efectivamente o exerce e que interesses reais são servidos.

Quem são os eleitores das autarquias? A maioria da população em qualquer autarquia de composição social normal é constituída por trabalhadores. Mas deste facto óbvio não são tiradas as devidas consequências. As diferenças sociais de base são amalgamadas num suposto “interesse geral” que não responde aos reais interesses da maioria. Apagadas as diferenças de classes, o “cidadão eleitor”, essa abstracção, torna-se, por quinze dias, a personagem central de um circo partidário-mediático que se encerra, como qualquer Carnaval, em cinzas.

Deveriam ser os interesses daquela maioria – emprego, transportes, habitação, infraestruturas, saneamento, espaços públicos, creches, associações culturais, ensino, progresso profissional, saúde, mas também iniciativa e participação política – a determinar a orientação das políticas autárquicas. Longe disso, o que pontifica é a protecção e a promoção dos interesses ligados ao capital, tomado como a força viva sem a qual nada parece mover-se. E o que sobra para lá disso é uma gestão mínima, quando não de miséria, das carências populares mais rudimentares.

Os candidatos autárquicos representam quem? Salvo raríssimas excepções, os milhares de candidatos autárquicos que reclamam os votos dos eleitores estão longe de representar os interesses ou a vontade das populações, e ainda menos dão expressão à capacidade de intervenção prática que a estas deveria caber de forma directa.

São disso prova a circulação de figuras partidárias de umas autarquias para outras, de acordo com os planos eleitorais das forças políticas que os apoiam; ou a arregimentação de pessoas sem mérito ou provas dadas apenas para preencher as listas de candidaturas. Tais figuras são, a maior parte das vezes, meros gestores de interesses que estão acima das reais necessidades das populações, ou simples paus-mandados respeitadores de fidelidades partidárias. Pouco ou nada resta aos eleitores locais senão optar entre as figuras de cartaz, escolhidas em bastidores, que lhes são postas à frente.

Esta realidade em nada é alterada pelo facto de, aqui e ali, se formarem listas de “independentes” – não apenas pela pequena minoria que constituem no panorama geral, mas também por não poderem escapar à teia que limita a actividade concreta das autarquias (não falando dos que se apresentam como independentes, mas em nada diferem dos candidatos abertamente promovidos pelos partidos, ou dos que saltitam de partido em partido em busca de lugar).

Quem manda nas autarquias? São as forças partidárias detentoras do poder no país, firmadas no aparelho do Estado (de que as autarquias são uma extensão), que determinam todo o curso da campanha eleitoral e dos mandatos autárquicos. Como bem se vê pela campanha que agora decorre, o propósito está em estender o poder dessas forças até aos concelhos e às freguesias, não em levantar a voz das populações locais para sua defesa perante o poder central ou diante de interesses que lhes são alheios.

Que meios de intervenção têm as autarquias? Nos grandes centros urbanos, tais forças dispõem de meios avultados (financeiros, de propaganda, repressivos) com os quais impõem o rumo que lhes convém. São esses os concelhos que suscitam a maior competição entre as forças do poder, pelos interesses económicos e políticos que aí se cruzam.

Nos meios pequenos e nas zonas rurais, a capacidade de intervenção é diminuta – desde logo por falta de recursos financeiros (decididos pelas câmaras municipais que, por sua vez, dependem do poder central ou das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional), mas também por subordinação às apostas políticas regionais das forças políticas dominantes.

Na maioria dos meios pequenos, nem as coisas mais elementares da vida diária das comunidades merecem o empenho das grandes forças políticas ou do Estado, como mostram os acalorados e repetidos debates entre candidatos sobre buracos nos passeios ou recolha de lixos…

Quem dita a política autárquica? Nos grandes concelhos urbanos, não é difícil fazer a lista dos interesses que determinam o curso da política autárquica: especulação fundiária e imobiliária, construção civil, turismo, grandes empreendimentos, espectáculos de massas, eventos empresariais, grandes obras públicas. Tudo de iniciativa ou de rendimento assegurado para o capital privado.

Os planos municipais de fomento económico, quando existem, ou os planos de ordenamento do território são definidos em função dessas conveniências. O seu “ajustamento” aos casos particulares que se apresentam, ou a arbitragem de conflitos de interesses, são fonte constante de favoritismos e de corrupção, desde as presidências e vereações aos serviços técnicos e administrativos.

Onde fica a vontade popular? O princípio que rege todas as candidaturas resume-se na ideia: “Votem em mim que eu depois faço e aconteço”. Ninguém se apresenta a sufrágio dizendo “São vocês, populações, trabalhadores, que têm de fazer valer a cada momento os vossos interesses e a vossa capacidade de agir”. Não são, portanto, a vontade e a actividade própria das populações que resultam potenciadas. A escolha eleitoral, da forma que é praticada, resulta numa usurpação de poder que remete os eleitores a mais quatro anos de silêncio, de resignação e de espera.

Aquilo que em princípio deveria ser um processo de governação local exercido de baixo para cima, assente em órgãos populares próprios com plenos poderes, é afinal um procedimento imposto de cima para baixo por forças que escapam ao controlo das populações. Sancionados por um boletim de voto, válido apenas para um dia determinado, os candidatos eleitos têm o posto garantido para os quatro anos seguintes, aconteça o que acontecer.

Podem as coisas ser diferentes? Nos tempos que correm, qualquer coisa fora deste colete de forças parece uma utopia. Mas a memória histórica mostra-nos que a realidade pode ser outra, que não é inevitável o domínio hoje exercido pelo capital e pelas formações políticas que o representam no poder.

Passou recentemente mais um aniversário da manifestação dos operários de Lisnave de 12 de setembro de 1974 que pôs a Lisboa burguesa em silêncio atrás das janelas, e que antecipou a resistência popular ao tentado golpe da “maioria silenciosa” de 28 de setembro. Cinco meses depois, a 7 de fevereiro de 75 as comissões de trabalhadores e moradores reunidas na Inter-empresas levaram a cabo uma manifestação contra a NATO que juntou mais de 80 mil pessoas. No final do mesmo ano, em 12-13 de novembro de 75, cem mil operários da construção civil cercaram o parlamento e a residência do primeiro-ministro em defesa dos seus direitos, obrigando o poder a assinar o contrato colectivo de trabalho reivindicado.

Desde abril de 74, durante mais de ano e meio, comissões de moradores ocuparam casas devolutas e forçaram os governos a promover a construção de casas populares apontando o caminho para a resolução imediata da crise da habitação. Operários e operárias ameaçados de despedimento não se resignaram a pendurar as batas: ocuparam fábricas e mantiveram-nas em laboração quando os patrões desertavam ou sabotavam a produção. Trabalhadores rurais ocuparam latifúndios dando realidade ao propósito de entregar a terra a quem a trabalha em detrimento dos direitos de propriedade. Presidentes de câmaras municipais reaccionários ou incompetentes, patrões sabotadores, capatazes prepotentes, informadores da polícia foram corridos por vontade das populações.

Tudo isto foram poderes locais efectivos – esses sim verdadeiramente democráticos – constituídos por iniciativa popular.

A diferença assinalável entre estes exemplos e a pobríssima realidade de hoje não está apenas na capacidade das massas populares e operárias se organizarem para reclamar direitos diante do poder ou do patronato. Está sobretudo no facto de, então, terem assumido o papel de actores políticos, de terem tomado a decisão de fazerem política por contra própria, aquela política que dizia respeito e servia os seus interesses de classe independentes. Foi isso que deu a esses órgãos de vontade popular uma extraordinária capacidade de mobilização dos trabalhadores e do povo pobre e potenciou a sua acção prática.


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