Sobre a hipocrisia do ocidente democrático

Manuel Raposo — 11 Setembro 2025

Guerra civil de Espanha, 1936-39. Brigadas Internacionais

As comemorações pelo fim da segunda guerra mundial, em 9 de maio em Moscovo e em 3 de setembro em Pequim, permitem – pela ausência deliberada das potências ocidentais, que boicotaram ambos os eventos – separar águas, oitenta anos depois, acerca do papel de cada um dos principais intervenientes no conflito. Alguns dos mitos persistentes alimentados pelo ocidente imperialista podem hoje ser desfeitos, não apenas pelas circunstâncias que rodearam aquelas comemorações, mas sobretudo pelo curso que os acontecimentos mundiais tomaram nos anos recentes.

Tudo parecia correr bem

Um primeiro mito tem a ver com o papel das potências capitalistas existentes em 1939 no combate ao nazismo e ao fascismo.

Todo o esforço da França e do Reino Unido (vestidos desde 1939-40 com a fatiota de arqui-inimigos de nazi-fascismo) foi no sentido de tolerar e encaixar as ambições políticas do fascismo italiano e do nazismo alemão nos anos anteriores à guerra. É hoje sobejamente sabido que ambos viviam na esperança de que a máquina de guerra do Eixo se dirigisse contra a URSS e a destruísse – esperança essa bem fundada nos propósitos anunciados de Hitler de encontrar o seu “espaço vital” a Leste, ou seja no território da URSS; e nas declarações sonoras de Mussolini de quebrar a espinha ao comunismo.

Enquanto a Itália massacrou a Etiópia e a Líbia e ocupou a Albânia, enquanto a Alemanha anexou a Áustria e a Checoslováquia, enquanto o fascismo irrompeu na Espanha republicana e democrática através de uma sangrenta guerra civil patrocinada por Hitler e Mussolini – tudo esteve bem para o ocidente democrático. A linha seguida pelos dirigentes britânicos e franceses foi a de tentar uma coexistência pacífica com o nazismo e o fascismo.

Do outro lado do Atlântico, os EUA seguiam com distanciamento e interesse a destruição que se desenhava na Europa, e contavam igualmente com a promessa de Hitler de acabar com a URSS. Os acontecimentos pareciam correr a seu favor sem terem de disparar um tiro.

Situação semelhante vivia-se no Extremo Oriente perante o expansionismo japonês, que viria a ser a terceira peça do Eixo. Franceses, britânicos e norte-americanos fecharam os olhos à invasão da China pelo Japão, iniciada em 1931, e só se empenharam na guerra a Oriente quando as possessões coloniais europeias na região foram ameaçadas e as bases norte-americanas no Pacífico atacadas.

Manter na sombra os verdadeiros sacrificados

Um segundo mito tem sido mantido à volta dos sacrifícios suportados pelos países capitalistas ocidentais para derrotar o nazi-fascismo. Os números bastam.

Mais de 30 milhões de chineses foram mortos de 1931 a 1945 até à derrota do Japão. Cerca de 27 milhões de soviéticos pereceram de 1941 a 1945 na grande guerra patriótica. Só na Bielorrússia, como mostra o magistral filme de Elem Klimov “Vem e vê”, mais de 5.200 povoações foram dizimadas pelos nazis, de um total de 9.200 na URSS. Nada que se compare com os 600 mil mortos franceses, os 800 mil britânicos e os 400 mil norte-americanos, militares e civis. Sem falar do grau de destruição física dos países, nulo nos EUA e reduzido em França e no Reino Unido.

Ainda quanto a sacrifícios, as potências ocidentais omitem por sistema os que elas mesmas impuseram a africanos e asiáticos, arregimentados nas colónias de então e levados para as frentes de combate na Europa, no Norte de África e na Ásia. Mais de um milhão de africanos e 350 mil asiáticos, sobretudo indianos, foram mobilizados à força e maltratados. Carne para canhão mais que quaisquer outros, morreram aos milhares (só indianos, 87 mil) por causas que não lhes diziam respeito, sem que merecessem sequer uma menção na história da guerra contada por europeus e norte-americanos. E, no pós-guerra, esses mesmos povos (Índia, Indochina, Argélia, Quénia, Gana, Sudão, Nigéria, …) tiveram ainda de enfrentar a mais brutal violência colonial quando se ergueram na luta nacional pela independência.

O antifascismo muito especial das democracias capitalistas

Um outro mito foi construído à volta da ideia de que as democracias liberais do Ocidente eram, por natureza, inimigas viscerais do nazi-fascismo.

Lembremos, como exemplo, a admiração sincera e o elogio de Churchill (incensado depois como modelo de democrata, patriota e resistente antifascista) a Mussolini e ao regime fascista italiano antes de começar a guerra. Recordemos o facto de terem sido os próprios regimes democráticos, pela mão dos seus sectores de direita, a abrirem o caminho do poder tanto a Mussolini como a Hitler. Lembremos ainda a vergonhosa “neutralidade” da França e do Reino Unido perante a guerra civil de Espanha que permitiu a vitória de Franco como prelúdio da guerra mundial. Não esqueçamos que durante quatro anos, de 1940 a 1944, metade de França – ironicamente chamada a França Livre por não estar militarmente ocupada pela Alemanha – foi dirigida por um governo em tudo colaborador do nazismo.

Não foram questões de princípio acerca dos respectivos regimes políticos que opuseram as democracias capitalistas ao fascismo e ao nazismo – foram as circunstâncias históricas da época que colocaram umas e outros em campos opostos. Como vimos, nem a expansão para Leste da Alemanha hitleriana, nem a expansão da Itália mussoliniana pelo norte de África, nem a expansão japonesa para território chinês incomodaram muito os líderes ocidentais.

O que despertou nestes a necessidade de entrar em guerra foi, muito concretamente, o facto de as ambições das potências do Eixo porem em causa os impérios da França e do Reino Unido, ameaçando roubar-lhes as possessões coloniais, e chocarem com as ambições imperiais em crescendo dos EUA.

Para evitar males maiores

Foi, pois, com extrema relutância e um longo arrastar de pés que os regimes burgueses democráticos aceitaram uma aliança com o verdadeiro inimigo de sempre, a URSS, quando os seus aliados naturais seriam os regimes burgueses nazis e fascistas – se estes cumprissem estritamente a função que deles esperavam os líderes ocidentais, que seria “acabar com o comunismo”. Concretamente, apear o regime soviético, dividir a Rússia em talhões e sufocar a revolução popular que crescia na China.

A França, o Reino Unido e os EUA, portanto, entraram na guerra por se terem tornado alvos das potências do Eixo, apesar de todas as cedências que lhes fizeram, em rigor, desde que o fascismo se implantou em Itália em 1922, o nazismo na Alemanha em 1933 e o fascismo japonês no início da década de 1930.

Desencadeada a guerra na Europa em 1939, só em meados de 1944 as potências capitalistas democráticas se resolveram a abrir uma frente de combate a Ocidente que colocasse as forças hitlerianas entre dois fogos, reclamação que a URSS vinha a fazer desde sempre. Esta decisão tardia foi forçada pelo facto de a Alemanha estar virtualmente derrotada após as vitórias soviéticas em Estalinegrado e Kursk (1942-43) que deram à URSS uma iniciativa estratégica na guerra que não mais perderia. Foi o avanço russo, visto como uma ameaça, que decidiu os líderes ocidentais.

Para o capital imperialista, desfeita a esperança de ver a URSS derrotada pelos nazis, o “espectro do comunismo”, de que o Manifesto do Partido Comunista falava em 1848, voltava a assombrar desta vez não apenas a Europa, mas o mundo. Era preciso contê-lo já que não fora possível esmagá-lo.

No Extremo Oriente, a mesma linha de conduta. Os EUA entram na guerra contra o Japão, por terem sido provocados na sua colónia havaiana, em finais de 1941, dez anos depois de a China ter começado a sofrer as agruras da ocupação militar japonesa; e dois anos depois de, em maio-agosto de 1939, o exército soviético, com a apoio da Mongólia, ter derrotado as forças japonesas no extremo leste da Sibéria.

O alvo principal das potências imperialistas, claramente identificado desde 1917, não foi o extremismo fascista e nazi, mas sim aquilo que a chamavam “o comunismo”, então corporizado na URSS e mais tarde na China revolucionárias. O poder do proletariado e das classes populares, e o que isso poderia representar de “mau exemplo” para os povos de todo o mundo, assustava as burguesias capitalistas acima de tudo, muito mais do que o poder dos extremistas de direita, pela razão evidente de que estes eram da mesma família de classe: burgueses, capitalistas e imperialistas. A competição pelo mesmo objectivo – a partilha e o domínio do mundo, a subjugação dos povos de todos os continentes – é que os tornou adversários.

Foi isto que fez da segunda guerra uma guerra entre potências imperialistas, tal como tinha sido a de 1914-18, concluindo um ciclo de 30 anos de confrontos pela partilha do mundo que configurou o capitalismo imperialista como hoje o conhecemos.

O rápido fim de uma aliança forçada

Não admira, pois, que, mal terminadas as hostilidades, aquela aliança de circunstância fosse quebrada. Em seu lugar, o ocidente capitalista tratou de erguer uma “cortina de ferro” (a expressão é de Churchill, pronunciada num discurso nos EUA, logo em março de 1946) entre o mundo Ocidental e o mundo soviético. E deu curso de imediato – nomeadamente com a criação da NATO e das instituições de Bretton Woods, que consumariam o predomínio norte-americano – a uma “guerra fria” destinada a conter a URSS e as democracias populares do leste europeu, na mira de as derrotar.

A condenação de alguns dos principais dirigentes nazis em Nuremberga não impediu que muitos outros (políticos, militares, polícias, cientistas) fossem recuperados pelos regimes ocidentais. Os métodos da chamada “polícia científica” apurados pelos nazis passaram a fazer parte dos guiões das polícias “democráticas” (e não tão “democráticas”, como a PIDE portuguesa), que os aplicaram abundantemente nas guerras coloniais subsequentes – na Argélia, na Indochina, em África, e depois no Iraque, no Afeganistão, em Guantânamo. Regimes fascistas como o português e o espanhol foram mantidos sem beliscadura e acolhidos pelos seus pares democráticos, a ponto de o Portugal salazarista ter tido honras de fundador da NATO.

A muralha da China que se fez crer existir entre as democracias capitalistas e os regimes fascistas, simplesmente, nunca existiu. Em 1939-45 o capital imperialista então dominante teve de desfraldar as bandeiras da democracia, da liberdade, do parlamentarismo, dos direitos humanos para poder travar, a contragosto, uma guerra, na realidade fratricida, contra as ambições imperiais do nazismo e do fascismo.

Regresso ao presente

Os factos da história acima reavivados ganham outro relevo quando vistos pelo prisma da actualidade.

Ao longo de oito décadas, os EUA promoveram sem cessar uma campanha de expansão militar cujo acto mais recente foi a tentativa de incorporar a Ucrânia na NATO, fazendo dela uma lança apontada à Rússia. No Médio Oriente, herdaram dos britânicos o estado mercenário israelita para controlo dos recursos energéticos da região e para dominarem as ligações entre a Ásia, a Europa e a África. No Extremo Oriente, cercaram a China de bases militares na esperança, que se vai mostrando frustrada, de conter o crescimento chinês. Por todo o mundo, tentam, também com sinais de insucesso, bloquear as organizações e as iniciativas políticas que se formam fora da sua esfera de influência. Com as capacidades económicas, políticas e ideológicas em declínio, exacerbam o uso da violência (dos golpes de estado às sanções económicas) e optam por instalar o caos onde não possam dominar.

Do lado europeu, a formação da UE, apresentada como solução para uma paz eterna entre os países membros, não impediu a Europa de promover a partilha da Jugoslávia, país recalcitrante aos cantos de sereia da União. Nem a impediu de ser parte activa na destruição do Iraque, da Líbia e do Afeganistão. Nem a fez hesitar em colaborar na expansão da NATO até às fronteiras da Rússia. Nem a coíbe de incitar os extremistas ucranianos a prosseguir o conflito que o Ocidente ateou, mesmo depois dos sinais de recuo dos EUA. Nem a desvia do propósito de sacrificar as populações europeias para levar a cabo a militarização do Continente. Como não a impede de manter o apoio ao regime terrorista de Israel, mesmo diante de um genocídio praticado a céu aberto e sem véus.

Democracias fascistas e fascismos democráticos

Os casos actuais da Ucrânia e de Israel são paradigmáticos da duplicidade, que se pode chamar democrático-fascista, das potências imperialistas.

Antes de a Rússia ter invadido a Ucrânia em 2022, foi aberta e amplamente exposto em meios de comunicação ocidentais a natureza anti-democrática do regime, a corrupção generalizada, o perigo que representavam as organizações nazis no país e o peso que tinham nas instituições. Bastaria isto, parecia, para riscar liminarmente a Ucrânia de uma candidatura à União Europeia. Mas não.

Depois da invasão, não apenas toda essa denúncia foi silenciada, como o regime ucraniano passou a ser apresentado como uma guarda avançada da liberdade e da democracia na Europa, pelo qual todos os europeus deviam bater-se e pagar as pesadas facturas da guerra. Os batalhões de nazis ucranianos passaram à condição de patriotas e de heróis. Zelenski, um faz-tudo corrupto sem espinha dorsal, foi comparado a Churchill (que, coitado, mesmo tendo sido o que foi, se deve ter revolvido na cova).

Diante do 7 de outubro de 2023 – que foi, objectivamente, à luz do direito internacional consagrado pela ONU, uma operação militar legítima da resistência palestina à ocupação ilegal de Gaza – europeus e norte-americanos fazem suas as dores de Israel concedendo-lhe um “direito de defesa” que, como ocupante, Israel não tem, e dando-lhe todos os meios (políticos, financeiros e militares) para massacrar a população de Gaza e da Cisjordânia.

Mais de 64 mil mortos palestinos, esmagadoramente civis, a destruição completa de Gaza, a fome e a doença como armas de guerra, o roubo das terras palestinas por colonos de mentalidade fascista, o ódio destilado sem rebuço pelos torcionários israelitas – nada disto é razão suficiente para que as classes dominantes norte-americana e europeias resolvam pôr cobro aos desmandos de Israel.

É tentador traçar paralelos. O rapto de cidadãos ucranianos no meio da rua para os incorporar à força na tropa lembra as mobilizações forçadas de africanos e asiáticos, de romenos ou búlgaros e outros. A tolerância perante o nazismo israelita tem antecedentes na passividade diante dos morticínios nazi-fascistas de comunistas, resistentes, judeus, ciganos, homossexuais ou deficientes. O arrasamento de Gaza compara com os bombardeamentos gratuitos de Guernika, de Dresden ou de Hiroxima. O genocídio dos palestinos está na linha dos massacres com napalm dos argelinos, dos vietnamitas ou dos grevistas angolanos da Baixa do Cassange. As torturas e assassinatos de presos palestinos bebem nas práticas de Auschwitz, Guantânamo ou Abu-Ghraib ou na morte de Germano Vidigal às mãos da PIDE, recriada por José Saramago no “Levantado do Chão”.

Os dias que correm são outros

Cabe perguntar por que razão regimes, como os da Europa e EUA, que reivindicam o mais alto respeito pela democracia, a liberdade e os direitos humanos apoiam e alimentam regimes como o de Kiev e o de Telaviv abertamente antidemocráticos, racistas, cerceadores das liberdades e violadores dos direitos humanos mais elementares.

A resposta só pode ser: são-lhes úteis. Assim o disse o chanceler alemão Merz ao reconhecer que Israel “faz por nós o trabalho sujo”, podendo ele, pelo mesmo critério, estender a ideia à guerra que Zelensky conduz na Ucrânia.

As forças extremistas de direita que hoje lideram a Ucrânia e Israel não são meros aliados que as potências ocidentais tenham sob protecção: são sim guardas avançadas do imperialismo contemporâneo. Tal como as hordas de Hitler, de Mussolini e de Hirohito lhes foram em dado momento úteis na sua cruzada contra a liberdade dos povos e a soberania dos países e, sobretudo, contra esses terríveis fantasmas que dão pelo nome de socialismo e comunismo – também o extremismo fascista e nazi renovados constituem instrumentos das forças imperialistas na luta que travam, aliás com sinais de desespero, para segurar o poder sobre o mundo que forjaram nos últimos 80 anos.

Com uma diferença assinalável nos dias que correm. O capital imperialista entrou na sua curva descendente. Os esforços que desenvolve não são de expansão, mas de sobrevivência. O seu campo de domínio reduz-se à medida que outras potências mostram capacidade de lhe fazer frente, agregando países até há pouco subordinados, sem saída, ao mando do capital imperialista.

É também para mascarar este facto do presente – esta volta que o mundo está a dar – que a distorção da história acerca dos protagonistas da segunda guerra tem utilidade para o ocidente imperialista. Diminuir o papel decisivo que os povos soviético e chinês, ou os africanos e asiáticos, ou os resistentes em cada país tiveram na derrota da barbárie nazi-fascista significa esconder o papel que todos os povos em geral podem ter no combate de hoje ao capital imperialista e ao renascimento do fascismo – independentemente e por cima das cabeças das burguesias que os dominem.


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