O novo despertar da esquerda árabe

Editor / Hamzah Rifaat — 8 Agosto 2025

O despertar da esquerda árabe na era do genocídio, a nível regional e mundial. Manifestação no Iémen de apoio ao Ansar Alá

As brutais campanhas militares dos EUA e de Israel no Médio Oriente nos últimos dois anos conseguiram enfraquecer a resistência na Palestina, no Líbano e na Síria. Mas até que ponto podem imperialistas e sionistas falar de vitória? Uma avaliação completa da situação actual tem de levar em conta a reacção política de fundo que tais campanhas estão a gerar no mundo em geral, no mundo árabe e muçulmano em particular e na própria sociedade israelita – e que efeitos próximos isso vai ter em toda a região.

A evidência, aos olhos de todos, da natureza fascista e genocida do estado israelita levou-o a um isolamento completo de que não mais poderá sair. Internamente, Israel dá sinais de uma sociedade que se abeira do colapso. Por tabela, o patrocínio pelos EUA das barbaridades cometidas em Gaza e na Cisjordânia – como no Líbano, na Síria, no Iémen e no Irão – traduz-se inevitavelmente num ódio acrescido ao imperialismo.

A análise de Hamzah Rifaat, publicada em Al Mayadeen, uma cadeia de informação sediada em Beirute, aborda o ressurgimento de correntes políticas de esquerda nas sociedades árabes e o que isso pode representar para o desenvolvimento de uma resistência anti-imperialista e anticapitalista, assente em gerações jovens e enraizada nos meios populares.

 

DE AMÃ A TÚNIS NOVAS VOZES DESAFIAM O IMPÉRIO E O CAPITAL

Hamzah Rifaat / Al Mayadeen, 21 julho 2025

Hamzah Rifaat explora o ressurgimento pós-2023 da esquerda árabe de Amã a Túnis, onde movimentos impulsionados pela juventude desafiam o império, o sionismo e o capitalismo por meio da resistência cultural e do activismo popular.

A história dá provas de que a política externa americana na região do Médio Oriente e Norte de África foi um fracasso abjecto. O “Império”, com as suas falhadas operações de mudança de regime no Iraque e na Líbia, a política de clientela, os acordos capitalistas de compadrio ao serviço dos complexos militares-industriais das economias ocidentais e a pequena elite dos países árabes, apenas desiludiu a juventude árabe.

À medida que as elites do Médio Oriente e Norte de África beneficiavam das economias de mercado ocidentais, as transformações sistémicas falhadas na ausência de igualitarismo e o aumento da agitação social a nível interno levaram a um despertar das inclinações esquerdistas entre a juventude.

Este despertar ganhou um novo impulso devido à ocupação israelita entrincheirada nos territórios palestinianos, ao genocídio implacável praticado pelo regime sionista, ao aumento da miséria e das desigualdades nos países árabes em 2024-2025, resultando em reivindicações culturais e intelectuais através de movimentos juvenis e sindicatos que desafiam o status quo.

Um exame mais atento das tendências em 2024-2025 também sugere que o activismo de esquerda ancorado no anti-imperialismo está a ganhar terreno no mundo árabe e entre activistas árabes no exterior que são contra o neocolonialismo e o capitalismo.

Uma rutura com a tendência dos anos 80

A década de 1980 no Oriente Médio foi uma época em que os ideais neoliberais e os sistemas financeiros defendidos pelos Estados Unidos e seus aliados deixaram um impacto indelével nas sociedades, culturas e governos da região. As elites árabes que beneficiaram do capitalismo de compadrio minaram nacionalistas, esquerdistas e socialistas árabes que procuram proteger o seu Estado da intervenção estrangeira e das violações da soberania popular. Os Estados Unidos, sob o sistema de Bretton Woods, iniciaram ajustes estruturais e mexeram nos sistemas económicos locais em nome de “reformas económicas” que apenas minaram as perspectivas de igualdade e promoveram capturas de elites, aumentos das desigualdades de rendimentos e privatizações. Os efeitos da década de 1980 são visíveis em muitos estados árabes de hoje, incluindo a Jordânia e a Tunísia, onde a miséria e as desigualdades persistem, apesar de uma pequena elite beneficiar de íntimas relações com países como os Estados Unidos.

No entanto, essa tendência mudou na era pós 11 de setembro [de 2001], em que uma elite profundamente enraizada, favorecida pela chamada “democratização” promovida pelos Estados Unidos, enfrentou uma reacção contra os sistemas monopolizados e os círculos de oligarcas que tornam o Estado, a economia e os sistemas políticos subservientes aos caprichos e desejos de alguns poucos. Isso desencadeou uma crescente percepção entre os cidadãos árabes e a juventude da necessidade de substituir os sistemas predatórios prejudiciais às políticas do homem árabe comum.

Revitalização pós-genocídio

Essa percepção e impulso da esquerda tiveram uma revitalização à medida que o genocídio de Gaza perpetrado pelo regime sionista em 2023, juntamente com os seus correligionários, se intensificou em escala, alcance e intensidade. O genocídio cometido por “Israel” é um exemplo por excelência de neocolonialismo, fascismo e capitalismo de compadrio em pleno curso, que só beneficia os planos de colonização israelitas e o complexo militar-industrial americano. Isso, no entanto, tem sido concomitante com um despertar árabe de esquerda em todo o mundo. Pense-se no Movimento da Juventude Palestiniana (MJP), uma organização transnacional, socialista e anti-imperialista com filiais em toda a América do Norte. O MJP é composto principalmente por jovens árabes e palestinianos e emergiu como um movimento socialista activo nos Estados Unidos no ambiente de genocídio, que rejeitou os canais partidários neoliberais dos democratas e republicanos que sufocaram a nacionalidade palestiniana e, em vez disso, participou dos protestos de 2024 nos campus dos EUA na Universidade de Columbia.

O movimento traduziu com sucesso o “Trinity of Fundamentals” [*] de 2024, um romance de resistência palestiniana para promover a consciência anticolonial e antiapartheid entre a população mais ampla dos EUA e, com tais esforços, provaram o sucesso quando a multinacional dinamarquesa Maersk anunciou, em junho de 2025, que cortava laços com a empresa de assentamentos [colonização] israelita.

Para além dos Estados Unidos, existem correntes críticas de esquerda que sublinham o despertar da esquerda árabe. Isso inclui Rezgar Akrawi, um esquerdista árabe que criticou o monopólio capitalista de software e plataformas de inteligência artificial. É importante notar que o genocídio de “Israel” em Gaza também foi marcado por narrativas falsas e campanhas de desinformação disseminadas em plataformas sociais por sionistas através do Facebook e empresas israelitas. Isso inclui conteúdos que branqueiam os crimes sionistas contra a humanidade e se focam no Hamas.

Os esforços da esquerda árabe são, portanto, louváveis e ainda mais significativos dado que o genocídio de Gaza permitiu que os jovens usassem as plataformas de média social para promover o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções a fim de pressionar “Israel” a cumprir o direito internacional e acabar com a ocupação dos territórios palestinianos. Claramente, o modus operandi padrão dos protestos alterou-se para a esquerda árabe, o que agora se traduz em ampla solidariedade cultural e resistência digital.

O amordaçamento das vozes palestinianas tem sido também uma característica do neoliberalismo nos Estados Unidos e do seu apoio cego a “Israel”. Académicos de esquerda, no entanto, reagiram. Pensemos em intelectuais iranianos como Asef Bayat, da Universidade de Illinois Urbana-Champaign, que rejeitaram o status quo elitista que marginaliza as camadas mais baixas da sociedade nos EUA, ao mesmo tempo que sublinharam a importância da política de rua e dos grupos urbanos desfavorecidos que adoptam as invasões silenciosas [quiet encroachments] como uma forma legítima de resistência.

Além dos EUA, há muito a esperar. Partidos políticos palestinianos reuniram-se em Pequim graças aos esforços diplomáticos da China. Há um impulso renovado para um verdadeiro renascimento democrático nos territórios ocupados, com ênfase no empoderamento das mulheres, estudantes e crianças. Além disso, os jovens pós-2011 [Primavera árabe] na Tunísia estão a procurar promover resistência comunitária e projectos a nível de base, em vez de dependerem da ajuda ocidental. Enquanto na Jordânia, o Partido “Widha” está a tornar-se o mais vocal sobre o sindicalismo e os direitos palestinianos, opondo-se às elites liberais. Muitas das tendências actuais extraídas das obras do político palestino George Habash fundiram marxismo e nacionalismo árabe, vilipendiando o sionismo como um instrumento capitalista.

O que se torna evidente é que as elites liberais ocidentais falharam em fornecer segurança material aos estados árabes, e o seu declínio moral e geopolítico sob a forma de silêncio sobre o genocídio de Gaza indica que ideologias alternativas têm de tomar a dianteira.

O despertar da esquerda árabe na era do genocídio, tanto a nível regional como mundial, constitui uma evolução positiva a este respeito.

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[*] “Trinity of Fundamentals”. A história de Kan’an, jovem de 22 anos, durante a sua fuga à ocupação israelita, de 1982 a 1991, motivado pela causa palestiniana. Romance inspirado na experiência real do autor, Wisam Rafeedie.


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