Israel: dos mitos à realidade
Editor / Shlomo Sand — 26 Julho 2025

O texto que reproduzimos, do historiador israelita Shlomo Sand, foi publicado originalmente em 2009 no jornal francês Le Monde Diplomatique, e resumia os argumentos de um seu livro recém-publicado intitulado “Como foi inventado o povo judeu”. Só por si, o título desmente uma das fábulas contemporâneas mais persistentes à sombra da qual as barbaridades mais inumanas têm sido cometidas. Na verdade, sendo o judaísmo uma questão de fé religiosa, faz tanto sentido falar de um “povo judeu” como faria falar de um “povo cristão” ou de um “povo budista”. No entanto, é na base desta invenção que o Estado de Israel, suportado por todo o Ocidente imperialista, justifica a sua existência.
Os sistemáticos actos de agressão contra palestinianos e em todo o Médio Oriente, desde a sua fundação há 77 anos, são cometidos invocando o direito a um território de onde o “povo judeu” teria sido expulso (a mítica ”terra prometida”) e da qual os palestinianos e árabes seriam os usurpadores.
É na condição auto-atribuída de “povo eleito” que Israel leva a cabo uma política de apartheid dentro de fronteiras, que faz do racismo, da xenofobia, do terror uma política de Estado – e que os ideólogos sionistas se permitem defender, sem qualquer disfarce, o extermínio de palestinianos, a morte aos árabes e a constituição de um “Grande Israel” por anexação dos territórios dos países vizinhos.
Sabe-se que a formação e a manutenção de Israel são produto do império britânico decadente e depois dos imperialismos norte-americano e europeu. Foi a conjugação dos interesses destas potências com uma ideologia útil para o efeito, o sionismo, que deu origem a Israel – um estado mercenário para garantir a ordem imperial no Médio Oriente. É este fundamento ideológico que Shlomo Sand ataca.
A investigação de Shlomo Sand deita por terra todos os mitos de que o sionismo se alimenta. Nem os judeus constituem “um povo” (um ethnos), nem houve nenhum êxodo, nem a Palestina foi alguma vez a pátria longínqua dos actuais israelitas. Mais: os herdeiros das antigas tribos que povoaram a região são os actuais palestinianos. O que levanta uma questão não apenas ideológica mas também política: que direito tem Israel de justificar a sua existência como estado constituído na base das falsificações históricas que Shlomo Sand desmonta?
DESCONSTRUÇÃO DE UMA HISTÒRIA MÍTICA
Os judeus formam um povo? Um historiador israelita deu uma nova resposta a esta velha pergunta. Ao contrário da crença popular, a diáspora não surgiu da expulsão dos hebreus da Palestina, mas de sucessivas conversões no norte da África, sul da Europa e Próximo Oriente. Ora, isto abala um dos fundamentos do pensamento sionista, aquele que pretende que os judeus são os descendentes do reino de David e não — Deus nos livre! — os herdeiros de guerreiros berberes ou cavaleiros cazares. (Le Monde Diplomatique)
COMO FOI INVENTADO O POVO JUDEU
Shlomo Sand
Todos os israelitas sabem, sem sombra de dúvida, que o povo judeu existe desde que recebeu a Torá (1) no Sinai, e que eles são os seus descendentes directos e exclusivos. Todos estão convencidos de que este povo, saído do Egipto, se estabeleceu na “terra prometida”, onde foi construído o glorioso reino de David e Salomão, mais tarde dividido nos reinos de Judá e Israel. Da mesma forma, ninguém ignora que ele foi exilado duas vezes: após a destruição do Primeiro Templo no século VI a.C., e depois da destruição do Segundo Templo em 70 d.C.
O que se seguiu foi uma deambulação de quase dois mil anos: as suas tribulações levaram-no ao Iémen, a Marrocos, a Espanha, à Alemanha, à Polónia e às profundezas da Rússia, mas conseguiu sempre preservar os laços de sangue entre as suas comunidades distantes. Assim, a sua singularidade não foi alterada. No final do século XIX, amadureceram as condições para o seu regresso à antiga pátria. Sem o genocídio nazi, milhões de judeus teriam naturalmente repovoado Eretz Israel (“a terra de Israel”), uma vez que sonharam com ela durante vinte séculos.
Virgem, a Palestina estava à espera que o seu povo original viesse fazê-la florescer novamente. Porque a Palestina pertencia a esse povo, e não a essa minoria árabe, desprovida de história, que lá chegou por acaso. Justas, então, foram as guerras travadas pelo povo errante para recuperar a posse de suas terras; e criminosa a oposição violenta da população local.
De onde vem essa interpretação da história judaica? Ela tem sido a obra, desde a segunda metade do século XIX, de talentosos reconstrutores do passado, cuja imaginação fértil inventou, com base em pedaços de memória religiosa, judaica e cristã, uma cadeia genealógica contínua para o povo judeu. A abundante historiografia do judaísmo certamente inclui uma pluralidade de abordagens. Mas as polémicas no seu interior nunca puseram em causa as concepções essencialistas desenvolvidas principalmente no final do século XIX e início do século XX.
Quando foram reveladas descobertas que poderiam contradizer a imagem desse passado linear, quase não receberam eco. O imperativo nacional, como uma mandíbula firmemente fechada, bloqueava qualquer tipo de contradição e desvio da narrativa dominante. Os casos específicos de produção de conhecimento sobre o passado judaico – os departamentos dedicados exclusivamente à “história do povo judeu”, separados dos departamentos de história (chamados em Israel de “história geral”) – contribuíram em grande parte para esta curiosa hemiplegia. Nem mesmo o debate, de natureza jurídica, sobre “quem é judeu?” preocupou estes historiadores: para eles, um judeu é qualquer descendente do povo forçado ao exílio há dois mil anos.
Nem esses pesquisadores “autorizados” do passado participaram da polémica dos “novos historiadores” iniciada no final da década de 1980. A maioria dos actores desse debate público, em número limitado, veio de outras disciplinas ou de horizontes não universitários: sociólogos, orientalistas, linguistas, geógrafos, cientistas políticos, pesquisadores literários, arqueólogos formularam novas reflexões sobre o passado judaico e sionista. Havia nas suas fileiras também diplomados vindos do estrangeiro. Dos “departamentos de história judaica”, por outro lado, vieram apenas ecos temerosos e conservadores, envoltos numa retórica apologética baseada em ideias preconcebidas.
O judaísmo, religião proselitista
Em suma, em sessenta anos, a história nacional amadureceu muito pouco, e provavelmente não evoluirá a curto prazo. No entanto, os factos trazidos à luz pela pesquisa colocam a qualquer historiador honesto questões que são surpreendentes à primeira vista, mas ainda assim fundamentais.
A Bíblia pode ser considerada um livro de história? Os primeiros historiadores judeus modernos, como Isaak Markus Jost ou Leopold Zunz, na primeira metade do século XIX, não a entenderam dessa forma: aos seus olhos, o Antigo Testamento apresentava-se como um livro de teologia constitutivo de comunidades religiosas judaicas após a destruição do Primeiro Templo. Foi preciso esperar pela segunda metade do mesmo século para encontrar historiadores, sobretudo Heinrich Graetz, portadores de uma visão “nacional” da Bíblia: transformaram a partida de Abraão para Canaã, o êxodo do Egipto e o reino unificado de David e Salomão em relatos de um passado autenticamente nacional. Desde então, os historiadores sionistas não deixaram de reiterar essas “verdades bíblicas”, que se tornaram o alimento diário da educação nacional.
Mas durante a década de 1980, a terra tremeu, abalando esses mitos fundadores. As descobertas da “nova arqueologia” contradizem a possibilidade de um grande êxodo no século XIII antes da nossa era.
Da mesma forma, Moisés não pôde fazer sair os hebreus do Egipto e levá-los à “terra prometida” pela simples razão de que, na época… esta estava nas mãos dos egípcios. Não há vestígios de uma revolta de escravos no império dos faraós, nem de uma rápida conquista da terra de Canaã por um elemento estrangeiro.
Também não há qualquer sinal ou lembrança do sumptuoso reino de David e Salomão. As descobertas da última década mostram a existência, na época, de dois pequenos reinos: Israel, o mais poderoso, e Judá, a futura Judeia. Os habitantes desta última também não sofreram exílio no século VI a.C.: apenas as suas elites políticas e intelectuais se instalaram na Babilónia. Deste encontro decisivo com os cultos persas nascerá o monoteísmo judaico.
O exílio do ano 70 da nossa era ocorreu efectivamente? Paradoxalmente, este “acontecimento fundador” na história dos judeus, de onde a diáspora tira a sua origem, não deu lugar a qualquer trabalho de investigação. E por uma razão muito prosaica: os romanos nunca exilaram um povo em todo o flanco oriental do Mediterrâneo. Com excepção dos prisioneiros escravizados, os habitantes da Judeia continuaram a viver nas suas terras, mesmo após a destruição do segundo templo.
Uma parte deles converteu-se ao cristianismo no século IV, enquanto a grande maioria se uniu ao islamismo durante a conquista árabe no século VII. A maioria dos pensadores sionistas estava ciente disso: Yitzhak Ben Zvi, o futuro presidente do Estado de Israel, bem como David Ben-Gurion, o fundador do Estado, escreveram-no até 1929, ano da grande revolta palestiniana. Ambos mencionam várias vezes o facto de os camponeses da Palestina serem os descendentes dos habitantes da antiga Judeia (2).
Na ausência de um exílio a partir da Palestina romanizada, de onde vieram os muitos judeus que povoaram a região do Mediterrâneo desde a Antiguidade? Por trás da cortina da historiografia nacional está uma realidade histórica surpreendente. Da revolta dos Macabeus, no século II a.C., à revolta de Bar-Kokhba, no século II d.C., o judaísmo foi a primeira religião proselitista. Os Hasmoneus já haviam convertido à força os Idumeus do sul da Judeia e os Itureanos da Galileia, anexados ao “povo de Israel”. A partir deste reino judaico-helénico, o judaísmo espalhou-se por todo o Próximo Oriente e em torno do Mediterrâneo. No século I d.C., no actual Curdistão, apareceu o reino judeu de Adiabene, que não será o último reino a “judaizar-se”: outros fariam o mesmo mais tarde.
Os escritos de Flavius Josefus não são o único testemunho do ardor proselitista dos judeus. De Horácio a Séneca, de Juvenal a Tácito, muitos escritores latinos expressam o seu medo disso. A Mishná e o Talmud (3) permitem essa prática de conversão – mesmo que, diante da crescente pressão do cristianismo, os sábios da tradição talmúdica tenham expressado reservas a esse respeito.
A vitória da religião de Jesus, no início do século IV, não pôs fim à expansão do judaísmo, mas empurrou o proselitismo judaico para as margens do mundo cultural cristão. No século V, apareceu no local do actual Iémen, um vigoroso reino judeu chamado Himyar, cujos descendentes manteriam a sua fé após a vitória do Islão e até aos tempos modernos. Da mesma forma, cronistas árabes falam-nos da existência, no século VII, de tribos berberes judaizadas: diante do avanço árabe, que chegou ao norte da África no final do mesmo século, apareceu a lendária figura da rainha judia Dihya el-Kahina, que tentou impedi-lo. Os berberes judaizados participaram na conquista da Península Ibérica e lançaram as bases da simbiose particular entre judeus e muçulmanos, característica da cultura hispano-árabe.
A conversão em massa mais significativa ocorreu entre o Mar Negro e o Mar Cáspio: dizia respeito ao imenso reino cazar, no século VIII. A expansão do judaísmo, desde o Cáucaso à actual Ucrânia, deu origem a múltiplas comunidades, que as invasões mongóis do século XIII empurraram em grande número para a Europa Oriental. Ali, com os judeus que vieram das regiões eslavas do Sul e dos actuais territórios alemães, lançaram as bases da grande cultura iídiche (4).
Estes relatos das origens plurais dos judeus apareceram, mais ou menos hesitantemente, na historiografia sionista até à década de 1960; depois, são progressivamente marginalizados antes de desaparecerem da memória pública em Israel. Os conquistadores da Cidade de David [Jerusalém], em 1967, tinham de ser os descendentes directos do seu reino mítico e não — Deus nos livre! — os herdeiros de guerreiros berberes ou cavaleiros cazares. Os judeus eram então vistos como um “ethnos” específico que, após dois mil anos de exílio e errância, acabaram por regressar a Jerusalém, a sua capital.
Os proponentes desta narrativa linear e indivisível não mobilizam apenas o ensino da história: invocam também a biologia. Desde a década de 1970, em Israel, uma sucessão de pesquisas “científicas” tem tentado demonstrar, por todos os meios, a proximidade genética de judeus de todo o mundo. A “pesquisa sobre as origens das populações” representa desde então um campo legitimado e popular da biologia molecular, enquanto o cromossoma Y masculino ganhou um lugar de honra ao lado de uma Clio judia (5) numa busca frenética pela singularidade original do “povo eleito”.
Esta concepção histórica constitui a base das políticas identitárias do Estado de Israel, e é aqui que reside o problema! Ela deu origem a uma definição essencialista e etnocêntrica do judaísmo, alimentando uma segregação que mantém os judeus longe dos não-judeus – árabes, bem como imigrantes russos ou trabalhadores imigrantes.
Israel, sessenta anos após a sua fundação, recusa conceber-se como uma república que existe para os seus cidadãos. Quase um quarto deles não são considerados judeus e, de acordo com o espírito das suas leis, este Estado não é deles. Em contrapartida, Israel continua a apresentar-se como o Estado dos judeus de todo o mundo, mesmo que já não sejam refugiados perseguidos, mas cidadãos de pleno direito que vivem em plena igualdade nos países onde residem. Por outras palavras, uma etnocracia sem fronteiras justifica a grave discriminação que pratica contra alguns dos seus cidadãos invocando o mito da nação eterna, reconstituída para se reunir na “terra dos seus antepassados”.
Escrever uma nova história judaica, para além do prisma sionista, não é, portanto, uma tarefa fácil. A luz que ali incide transforma-se em fortes cores etnocêntricas. No entanto, os judeus sempre formaram comunidades religiosas constituídas, na maioria das vezes por conversão, em várias regiões do mundo: elas não representam, portanto, um “ethnos” com uma mesma origem única e que se teria deslocado ao longo de uma errância de vinte séculos.
O desenvolvimento de toda a historiografia, bem como, de um modo mais geral, o processo da modernidade, passam um tempo, como sabemos, através da invenção da nação. Esta ocupou milhões de seres humanos no século XIX e durante parte do século XX. O fim deste último século viu esses sonhos começarem a ser despedaçados. Um número crescente de investigadores analisa, disseca e desconstrói as grandes narrativas nacionais e, em particular, os mitos de origem comum caros às crónicas do passado. Os pesadelos identitários de ontem darão lugar, amanhã, a outros sonhos de identidade. Como qualquer personalidade constituída por identidades fluidas e variadas, a história é também uma identidade em movimento.
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(1) Texto fundador do judaísmo, a Torá — a raiz hebraica yara significa ensinar — consiste nos cinco primeiros livros da Bíblia, ou Pentateuco: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio.
(2) Ver David Ben-Gurion e Yitzhak Ben-Zvi, “Eretz Israel” no Passado e no Presente (1918, em iídiche), Jerusalém, 1980 (em hebraico) e Ben-Zvi, Nosso Povo na Terra (em hebraico), Varsóvia, Comité Executivo da União da Juventude e Fundo Nacional Judaico, 1929.
(3) A Mishná, considerada a primeira obra da literatura rabínica, foi concluída no século II d.C. O Talmude sintetiza todos os debates rabínicos sobre a lei, os costumes e a história judaica. Existem dois Talmudes: o Talmude Palestino, escrito entre os séculos III e V, e o Talmude Babilónico, concluído no final do século V.
(4) Falado pelos judeus da Europa Oriental, o iídiche é uma língua eslavo-germânica que contém palavras derivadas do hebraico.
(5) Na mitologia grega, Clio era a musa da história.
Shlomo Sand: historiador, professor da Universidade de Telaviv, autor de How the Jewish People Were Invented.