Uma visita guiada aos infernos

José Mário Branco — 30 Maio 2008

livropide.jpgPara quem viveu durante o regime salazarista, o livro de Irene Pimentel é uma espécie de descida aos infernos. A anatomia de um pesadelo. A autora, aliás, refere-o discretamente na interessante introdução explicativa. O que é, o que pode ser, fazer a história dos pides quando se viveu sob o seu império obscuro e omnipresente, mesmo sendo-se historiador e sabendo manejar as ferramentas da ciência histórica?

A História da PIDE é um livro cheio de informações importantes e bastante bem organizadas. E, aos poucos, à medida que se lê, vai-se instalando no leitor um mal-estar que para o fim se torna insuportável. O eixo do livro, respeitando uma realidade indiscutível do longo período que abarca (1945-1974), é a luta entre a PIDE (elemento aglutinador das várias componentes do regime – partido único, Legião Portuguesa, PSP, GNR, Judiciária, forças armadas e Igreja Católica) e o PCP, a única força consequente e permanente de resistência activa e organizada em todo o país, também ela aglutinadora das oposições a Salazar. Uma luta que, não fora a gravidade do combate travado e os sofrimentos dele decorrentes, parece um jogo do gato e do rato.
Há algumas histórias mal explicadas e, em relação a episódios mais obscuros, fica-se com um sabor a coisa jornalística.

Não se percebe o critério que levou a autora a nomear alguns informadores da PIDE, e outros não. Uma vasta rede (nos primeiros meses de Abril, falava-se de dezenas de milhares) que sempre tem sido objecto de uma discrição acauteladíssima.

Uma pequena nota de protesto contra gralhas, erros gramaticais e repetições que, não sendo da responsabilidade da autora, seriam evitáveis se a editora tivesse assegurado uma revisão cabal, como é sua obrigação.

Mas vale a pena ler este livro. Para dar sentido à perda de tantas vidas e compreender a face sombria da resistência clandestina, com os seus heróis, as suas fraquezas, as suas rotinas. Para que “não se apague a memória”. Para que não volte a acontecer.


Comentários dos leitores

Manuel Monteiro 30/5/2008, 15:33

Este é um livro útil e importante, sobretudo para que não se apague a memória.
Mas a mim, trabalhador explorado deste país, sabe-me a pouco. E como o MV não é um repositório de lugares comuns-para isso temos a imprensa burguesa- é nossa obrigação ir mais fundo e procurar situar as questões nos seus devidos lugares.
Vêm agora uns corifeus gritar que a Pide foi uma aberração do sistema fascista. Pergunto: não era esse sistema capitalista? Ou era socialista?
Não existe aberrações na luta de classes; existem necessidades. O Capitalismo alemão necessitou do nazismo, pois impos o nazismo, primeiro por eleições "democráticas", depois por golpes de terror. O capitalismo espanhol precisou do fascismo? Promova-se uma guerra civil. Havia uma certa bagunça depois da implantação da república em Portugal? Pois saia um seminarista e um fascimo à portuguesa. Tudo limpinho. Estes países mudaram de sistema? Não, o capitalismo foi o mesmo, mudou foi de face, de "democrático" para fascista. Não me falem em aberrações, falem-me em interessses de classe.
Agora algumas perguntas interessantes: porque não foram os pides julgados e condenados pelo sistema "democrático" saido do golpe do 25 de Novembro? O que levou o regime novembrista a considerar quase todos os pides funcionáros públicos e a atribuir-lhe reformas para o resto da vida? Porque esconderam a lista da grande maioria dos bufos e informadores? Porque não foram saneados e punidos os juizes dos tribunais plenários, onde eram condenados os anti-fascistas? Porque não foram condenados os assassinos do General Delgado? Tudo isto se passou em pleno regime democrático-burguês.
Tudo isto para dizer que se a PIDE, a sua história, pode ser uma questão histórica, ela é, ainda hoje, ou hoje mais que nunca, uma questão política: não nos deixemos levar por choradinhos e por falinhas mansas a respeito das pretensas aberrações. Os que lutaram e morreram, os melhores de todos nós, exigem que a sua memória seja respeitada através do combate ao responsável da repressão: o capitalismo opressor. Isto é história e política.
Manuel Monteiro

José Mário Branco 3/6/2008, 17:24

A qualificação da PIDE como uma aberração foi feita por quem. Não foi a autora deste livro, ou então escapou-me. As questões levantadas por Manuel Monteiro são, no geral, politicamente pertinentes, mas ele deixa (involuntariamente) a ideia de que está a falar do livro e da sua autora, o que não é justo.

irene pimentel 16/10/2008, 13:14

Caro José Mário Branco
Só agora tive oportunidade de ler uma referência ao meu livro.
Uma questão importante levantada é aquela acerca dos informadores, que, penso, é um dos "calcanhares de Aquiles" do meu estudo, mas que se prende com a falta de fontes. É que o Arquivo da Torre do Tombo, onde está o arquivo da PIDE/DGS expugou os nomes de todos os informadores (em nome da preservação do bom nome!), além de não fornecer qualquer lista dos mesmos, que segundo se sabe, deve existir. Contra isso, alguns historiadores e eu própria temos protestado. Além disso, como se sabe, o próprio director dos serviços de Informação da DGS, Álvaro Pereira de Carvalho queimou e destruiu listas de informadores no próprio da 25 de Abril. Assim sendo, tive de ir à "cata" de alguns informadores, cujos nomes escaparam do «expurgo» ou que encontrei na imprensa da época, ou nos processos do Tribunal Militar a que foram sujeitos alguns deles (sem nunca terem sido julgados), que encontrei mais tarde, já depois de ter defendido a tese de doutoramento. O mais grave é que nunca se poderá saber, segundo penso, quantos informadores realmente havia.


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