O Lado Selvagem

Cristina Meneses — 12 Março 2008

intothewild_72dpi.jpgAos 22 anos, Christopher McCandless abandona uma vida desafogada (uma família classe média norte-americana nos anos 90) em busca da felicidade que não encontra no mundo de regras e de mentira em que vive. Verdade e felicidade serão as duas faces de uma mesma existência plena?

Viaja pelo país e acaba por alcançar o Alasca, que lhe surge como a imagem da libertação e do encontro com a vida em estado “natural”. Pelo caminho relaciona-se com personagens que vivem nas margens da sociedade que rejeita e que vivem os mesmos dramas que conhece ou a que ele próprio deu origem – o desaparecimento de um filho, a solidão, a incompreensão – conseguindo, por vezes, devolver-lhes a felicidade.

Christopher irá morrer só, dois anos depois, vítima da dura Natureza a que se acolhera, compreendendo (tarde demais?) que a felicidade/verdade tem de ser vivida em comunhão com outros, a resposta que esteve sempre presente no caminho que trilhou. O meio natural do ser humano, afinal, é a sociedade que ele próprio cria.

Empenhado nas causas sociais de “esquerda”, o realizador questiona (com o apoio de uma notável banda sonora) a postura egocêntrica e individualizada do cidadão comum e faz um indirecto apelo a uma sociedade nova. Se não, porquê o filme?


Comentários dos leitores

Renato Teixeira 26/3/2008, 16:28

“Into the wild” to get into the people
O filme “Into the wild”, com realização e argumento de Sean Penn, é feito a partir do original de Jon Krakauer (1998) baseado numa história verídica e é antes de mais um mergulho nas contradições da sociedade norte-americana.
Aos 22 anos, Christopher McCandless oriundo de uma família classe média norte-americana abandona a vida que lhe está destinada, em busca da felicidade que não encontra no mundo de regras e de mentira em que vive. Em busca da verdade e em fuga do materialismo que contamina a sociedade americana, Christopher percorre vários mitos que alimentaram as margens da sociedade, da Zaratrusta de Nietzsche ao Walden Henry David Thoreau.
Recusando assinar a sua biografia antes mesmo de a viver, rejeita o que lhe estava atribuído e o que dele seria esperado como habitual. Dá as provas que precisa de dar, mais aos outros do que a ele próprio. Assim termina a licenciatura com brilhantismo, assim ganha uma bolsa e o consequente respeito pela família. Tinha tudo para ser feliz na voraz e classista sociedade americana.
A primeira dimensão crítica do filme, antes mesmo da diáspora até ao Alasca, é a crítica que subjaz à família tradicional americana, que é cada vez mais a família tradicional global. Pai autoritário e conservador, mãe protectora e submissa, família presa à escravatura do trabalho e da matéria que só trás a verosimilhança da felicidade. No meio das boas casas, dos bons carros, e da boa carreira, e da bela namorada, dos churrascos em família, Christopher só vê hipocrisia. Antes mesmo de qualquer outra descoberta, antes mesmo de saber se terá sucesso a sua diáspora pela verdade verdadeira e pela felicidade genuína, a rejeição do seu modelo de origem é uma traição de classe, e uma assunção bem conhecida da poesia portuguesa: “Não sei por onde vou mas sei que não vou por ai!”.
Mas Christopher encontra logo no início da sua viagem ao Alasca um grande problema: as suas próprias convicções. Ao longo da viagem uma das principais lutas não será a travada com o mundo, nem mesmo com os responsáveis pelo que rejeita. Não quer saber quem é o responsável e para ele todo e qualquer participação no mundo mundano é uma capitulação, uma fantasia alienante. Assim desdenha os hippies com a mesma crueldade com que não aceita ser adoptado pelo velho que o adoptou. Assim rejeita o amor e o desejo como resquício dos dogmas que, invisíveis, permanecem, no seu espírito contaminado de moralidade burguesa. Apesar do que os outros lhe vão ensinando, nas entrelinhas, Christopher não ouve e não vê, obcecado com a ideia romântica que recolheu dos livros mas que não encontra reflexos na realidade.
A imagem da libertação e do encontro com a vida em estado natural, puro, está fechada algures entre alces e renas, no meio da mais inóspita natureza, que ele não consegue compreender. O seu desconhecimento desse mundo leva-o primeiro a sofrer com a morte de um velho alce, mas há-de matá-lo com bagas venenosas.
Na viagem conhece pessoas que vivem nas margens da sociedade e que vivem os mesmos dramas que ele conhece, mas não reconhece. Pelo menos no momento em que os vive.
Christopher irá morrer só, vítima da crueldade da natureza a que se acolhera, mas que não o acolhera, compreendendo, tarde demais, que a felicidade e verdade só têm sentido quando partilhada.
Só ai percebe, num flash-back muito bem montado por Sean Penn, que a resposta à pergunta que o levou ao “exílio” esteve sempre presente na sua viagem e nela, nas pessoas com quem foi aprendendo, mesmo sem se dar conta disso. Ai, só aí, percebe o que o encantava no rude camponês da ceifa do trigo era a sua imensa generosidade. Aí, e só aí, percebe que afinal o casal de hippies encontrou para além de tudo a sua via para a felicidade. Aí e só aí, percebeu a estranha euforia do casal escandinavo que comia salsichas na margem do rio.
A conclusão é óbvia: “O meio natural do ser humano é a sociedade que ele próprio cria”, mas acima de tudo é relevante a capacidade do ser humano transformar o mundo desigual e insustentável em que vivemos em algo mais solidário, partilhado, e verdadeiro.
Empenhado nas causas sociais e na sua tradição, Sean Penn questiona, com uma notável banda sonora de Eddie Veder, as contradições de quem rejeita a norma dominante de uma determinada sociedade. Encontrou numa histórica verídica o seu próprio alter-ego e por isso trata Christopher com extremo carinho. A partir de Christopher como que se fosse a partir de si próprio, fá-lo com um personagem egocêntrico, sem dúvida, mas sensível, e que nas contradições da sua própria natureza de classe, desbrava o caminho que precisa para se encontrar. Christopher conclui tarde que é maior a violência da natureza do que a do ser humano. Sean Penn, felizmente, descobriu a tempo e por isso se empenha como empenha, do movimento contra a guerra no Iraque até à procura de uma sociedade mais justa.
O filme de Sean Penn é, antes de mais, um convite à não desistência, à resistência, um convite à unidade e à partilha, um convite à luta para combater o que no mundo abominamos.
Quem vê no filme uma critica à esquerda até pode estar a ver bem. Mas se sobre a esquerda não se tiver uma visão monolítica, clubista e dogmática. Está lá, de facto, uma crítica a uma certa esquerda, uma esquerda que pensa que a revolução está apenas na nossa cabeça, e que resolvendo as nossas próprias contradições resolvemos o problema do mundo. Uma crítica que não despreza a necessidade de não pensar apenas nos amanhãs que talvez cantem um dia, e por isso a necessidade de fazer a revolução dentro da nossa cabeça – tal como Cristhpher, não aceitar o que nos é dado como adquirido – mas depois ousar ir mais além, e aceitar o desafio gigantesco de partilhar essa revolução com os outros. Só assim ela faz sentido e só assim é que ela não definha na montanha, onde definhou Zaratrusta.
É aqui que surge o central na crítica de Sean Penn: podemos não saber fazer a revolução, podemos não saber como mudar o mundo. Essa ignorância pode nos mais idealistas levar mesmo à morte. Mas acima de tudo o que não é tolerável é ser feliz na insignificância da nossa condição original. Quem aprende a ser feliz assim, aprende a ser feliz com guerra, aprende a ser feliz a bater na mulher e nos filhos, aprende a ser feliz na grandeza decadente do seu automóvel de turno ou da sua bebedeira de época.
Em suma, aprende a ser feliz sozinho, mesmo que à sua volta esteja tudo cheio de gente.


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