Sócrates acha que os portugueses são parvos

José Mário Branco — 13 Janeiro 2008

socratestratado_72dpi.jpgRaramente os formalismos da conversa dos deputados na Assembleia foram tão ridículos como no dia em que Sócrates anunciou a ratificação do Tratado Europeu por via parlamentar. Um contraste de palhaçada entre, por um lado, aqueles “vossa excelência” a que os obriga o regulamento e, por outro, a aldrabice pegada das justificações do primeiro-ministro para não fazer o referendo.

O argumento de Sócrates foram dois. Primeiro, a mentira de que o Tratado Europeu é “diferente” da chumbada Constituição Europeia de há dois anos. Sabemos que o conteúdo é praticamente o mesmo, que tiraram o hino e a bandeira e pouco mais; o essencial mantém-se e só lhe mudaram o nome para, com esta finta jurídica, confirmarem o que já se sabia: a Europa do capital tem medo da opinião dos povos como o diabo da cruz.

A segunda razão – já aflorada por Mário Soares e confirmada na Quadratura do Círculo por Jorge Coelho em nome do PS – é a de que “não se pode referendar um documento tão extenso e tão complexo”. O que eles querem dizer é que, para maginalizar os eleitores, basta arranjar maneira de complicar o paleio “técnico” das leis e dos tratados, e reservar assim para os “especialistas” decisões que têm a ver com a vida de todos.

Esta não é a primeira aldrabice do governo de Sócrates, longe disso, e certamente não será a última. Mas é especialmente nojenta porque é descarada e é atirada como um insulto explícito à inteligência dos eleitores.

Estamos daqui a ouvir os telefonemas dos “patrões” Angela Merckel, Sarkozy e Brown: “Tu vê lá o que é que arranjas. Tens a certeza de que ganhas o referendo?” E o outro, do lado de cá: “Nem por isso. Temos, há vários meses, um grupo de assessores a analisar as probabilidades. Esta gentalha (a gentalha somos nós) não percebe nada do Tratado, mas… como está muito zangada com o governo por outros motivos, era capaz de chumbar o Tratado só para correr connosco”. E a questão ficou decidida: “Então trata lá de acabar com isso.”

A União Europeia em todo o seu esplendor. Sócrates e o PS em todo o seu esplendor. Estamos a falar, agora, sobretudo da questão do estilo. Já sabíamos que esta Europa nada tem a ver com os interesses dos trabalhadores, antes pelo contrário; é uma caminhada na unificação e no reforço do grande capital europeu, feita à revelia de quaisquer princípios democráticos. Já sabíamos que esta Europa é um negócio em que os governos, por meio de uma sucessão de mentiras como a do Tratado – ou como a outra, mais antiga, da “Europa connosco” de Mário Soares –, vão servindo de biombo à total hegemonia dos grandes interesses privados sobre as nossas vidas quotidianas. E, se não sabemos, devíamos saber que a única Europa que nos interessa é a que há-de unir as grandes massas de gente que nela trabalha e sofre.

Mas, o que nos disseram ontem estes empregados do capital foi que já não precisam da “mística” europeia para nada. Foi o que significou Sócrates com aquele sorriso cínico. Acabou-se o “envolvimento ideológico” democrático da Europa, às urtigas as estrelinhas e o Beethoven. “Vocês estão de rastos, protestam com isto e aquilo, os centros de saúde, as cêntimos dos reformados, os 600 mil desempregados, os dois milhões de pobres, mas deixam-se comer dois dias depois e a gente continua. Se for preciso ainda votam em nós outra vez, porque não há mais ninguém”.

Serve para quê o ar indignado de Suas Excelências os deputados do PC e do BE? Serve para quê o “mecanismo democrático” da moção de censura do Bloco? Sabem para que serve? Para dizer à gente: “Estejam quietinhos que estas coisas resolvem-se aqui, com estes mecanismos”. Faz parte do espectáculo.

Onde está o povo furioso, roubado, espoliado e aldrabado? Quando é que vamos decidir-nos a varrer este lixo da porta da nossa casa? Estamos zangados? Estamos, sim senhor. Então, e o que vamos fazer com esta zanga? Entregar a chave da casa assaltada ao ladrão que vier a seguir?


Comentários dos leitores

Gregório Trindade Curto 14/1/2008, 1:37

Um artigo com algum azedume - finalmente!! - contra o governo e essa união europeia e esse tratado que nos querem impor. Ainda assim, porque raio há-de acabar o artigo com perguntas em vez de se dizer com clareza que, para acabar com a ofensiva avassaladora da burguesia contra os direitos e interesses do povo trabalhador, é preciso derrubar o governo? Não estará o Mudar de Vida a ficar para trás, uma vez que, quase que por todo o país, o povo manifesta repúdio e desprezo por Sócrates e companhia? Fazer política revolucionária é estar ao corrente dos anseios e preocupações populares e apontar caminhos.
Para quando um artigo assim no Mudar de Vida?
Gregório Curto

Toni 23/1/2008, 15:02

Sócrates decidiu que não há referendo para ninguém. Bem, talvez não tenha sido ele quem decidiu, mas a verdade é que foi ele quem transmitiu essa decisão. Portanto, foi também a ele que coube a tarefa de explicar o porquê do caminho escolhido.
Ora, o rapaz não fez por menos e decidiu tomar-nos a todos por parvos. Começou, na boa linha ditatorial de que vai dando cada vez mais exemplos, por afirmar que "não se justifica fazer um referendo quando há um consenso alargado na sociedade portuguesa quanto ao projecto europeu e quanto ao próprio Tratado de Lisboa". Então andaram estes homens todos, mais sábios que a sociedade portuguesa, decerto, a discutir, durante meses, se não anos, o que se escreve no Tratado e nós, que não participamos nessa discussão e que, portanto, estamos menos conscientes das implicações reais do enunciado, estamos de acordo logo à partida? Ou será que a sociedade portuguesa é bastante mais evoluida do que os líderes europeus e não necessita de mais do que meia dúzia de notícias no jornal para cimentar a sua concordância?
Passando à segunda razão para não se referendar o Tratado de Lisboa, não podemos senão ter medo de a TSF ter deturpado propositadamente as palavras de Sócrates, quando lhe coloca na boca a frase "Fazer um referendo aqui em Portugal teria implicações noutros países e é justo dizer que, no mínimo, agravaria os riscos de o tratado nunca entrar em vigor". Ou então, o moçoilo perdeu o pudor e atreveu-se mesmo a dizer que a democracia que ele defende é um sistema em que, caso se desconfie que a resposta do povo é diferente da vontade de quem manda, não se coloca a pergunta.
Não se trata de perguntar ao povo português. Aí, Sócrates, acha que o governo até ganhava, porque aproveitaria a discussão sobre o Tratado de Lisboa e sobre o que é isso da União Europeia, para "centrar o debate político num dos maiores sucessos do Governo, alcançados em Lisboa durante a presidência portuguesa". Desta vez não será dos jornalistas da TSF, será de mim, mas acho que o que o primeiro ministro está a dizer é que até lhe dava jeito que as atenções fossem desviadas para aí, de forma a que não se reparasse tanto no que, no entretanto, de mal ele fizesse. Trata-se, isso sim, de perguntar a povos mais imprevisíveis do que os tugas, gente que, por vezes, decide ir contra a voz do dono. Isso disse Sócrates quando afirmou, que tal "agravaria os riscos de o tratado nunca entrar em vigor". Sei que esta repetição duma citação não é do mais ortodoxo, mas ainda não deixei de me maravilhar com a candura da frase.
O que eu gostava mesmo era de viver numa terra onde essa noção de primeiro-ministro fosse obsoleta. Mas, enquanto não se chega lá, já me ia bastando que o PM pugnasse por que o seu país fosse mundialmente conhecido por ser inflexível na aplicação das noções que o sustentam, como seja a de democracia. E não por ser o que dá exemplo de autoritarismo de forma a que outros não tenham que sair embaraçados.
O terceiro argumento é mais uma cereja em cima do bolo. O que ele prometeu referendar foi a Constituição Europeia, não foi o Tratado de Lisboa. Podia ter utilizado isso antes: o que eu prometi referendar foi o aborto, não foi a interrupção voluntária da gravidez. Tão infantil que até dói. Eu disse que te dava uma pastilha elástica, mas nunca te prometi que não a mastigava primeiro. Ah! como odiei o meu irmão quando ele me disse isso...

antónio sousa 8/2/2008, 16:09

-Bem eu acho que o senhor eng até tem alguma razão é que se a maioria dos portugueses não fossem uma cambada de parvos, ele há muito que não era primeiro ministro cá do sitio... ou não será assim?


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