Censurado

José Mário Branco — 28 Dezembro 2007

filmecensurado_72dpi.jpgDiz-se que é um entre vários filmes que nos vão chegar dos EUA sobre o tema das guerras do Iraque e do Afeganistão. Era de esperar. Como de costume, a maior parte irá fazer jus à propaganda oficial, com os bons “libertadores” e os “maus” de faca nos dentes. Mas nos “States”, sempre que se manifesta algures no mundo o barbarismo da sua política imperial, aparecem algumas consciências humanistas do cinema que, com crueza e amor pela verdade, realizando filmes independentes e de baixo orçamento, nos dão uma visão bem diferente dessa propaganda oficial.

Recentemente estreado em Lisboa (Corte Inglês, Monumental) depois de ter sido visto pela primeira vez no Festival de Veneza deste ano (onde foi galardoado com o Leão de Prata para o melhor realizador), Censurado (“Redacted”) de Brian de Palma é um filme inovador, bem feito e emocionante que, com realismo documental, conta a história de um grupo de soldados estadunidenses na guerra do Iraque, em operação de vigilância na cidade de Samarra, fartos de uma estranha rotina de perigos e tensões em que tudo pode acontecer e (quase) nada acontece, ansiosos por voltarem para casa, mobilando o vazio com o instinto de morte que lhes meteram na cabeça.

Simulando a utilização de imagens vídeo, de posts de blogues ou do YouTube, de câmaras de vigilância e, por vezes, dos médias cuja presença inesperada nas cenas de repressão e de grande sofrimento nos parece estranha porque o normal é estarem ausentes, o filme baseia-se num episódio real: alguns soldados decidem voltar a uma casa onde haviam feito uma incursão para prender supostos resistentes e violar uma menina de 15 anos, acabando por matar a sangue frio a pobre violada e toda a família. Um dos soldados, que aspira a tirar um curso de cinema, filma tudo, antes, durante e depois, incluindo as discussões entre eles.

É este soldado que, em retaliação pelo crime, é raptado por “resistentes” em plena cidade, decapitado “em directo” e, depois, o seu corpo devolvido com a cabeça pousada em cima. Durante todo o filme, é patente a oposição surda da população iraquiana, uma espécie de ameaça permanente que ronda cada gesto ou não-gesto dos ocupantes. Mas a verdade é que o rapto e a decapitação do soldado-cameraman é o único acto concreto e visível que nos é dado como símbolo da resistência candestina (se exceptuarmos a explosão de uma mina numa lixeira que, matando um sargento, desencadeia todo o processo). Ou seja, o filme ignora – talvez porque o realizador também ignora – a concreta realidade da resistência, da sua organização e dos seus métodos de actuação. Como confirmam múltiplas declarações públicas, os resistentes iraquianos recusam e denunciam os atentados terroristas e os barbarismos que lhes atribui a propaganda pró-ocupação: “A resistência vive mergulhada e actua no seio da população civil, por ela protegida e ajudada, e luta por um Estado democrático. Os métodos terroristas são métodos de gente isolada e retrógrada, que só entrou no Iraque pela mão dos estadunidenses”.

Falta, portanto, nesta história bem contada, um dado essencial para compreendê-la. É pena. Porque se trata de um belo filme, empenhado e bem esclarecedor do beco sem saída em que são metidos estes jovens mercenários brutais e inconscientes. E porque, assim o quis o realizador, o filme engloba na sua acusação os médias do sistema que nos contam todos os dias uma outra história. Ficção, é a notícia. Real, é esta ficção.


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