Altos e baixos voos da família Dassault

Manuel Vaz — 13 Novembro 2009

marcel_dassault_1914.jpgPara ganhar o apoio da populaça, Nero organizava festas e oferecia presentes ao seu redor. Suetónio (69-141 D.C.) na sua obra As vidas dos doze Césares, descreveu uma dessas festas oferecidas pelo imperador romano, nestes termos: “dia-a-dia chovia sobre a multidão uma braçada de presentes dos mais variados: diariamente um milhar de pássaros de todas as espécies, víveres diversos, cupões dando direito a sacos de farinha de trigo, muita roupa, oiro, prata, pedras preciosas, pérolas, quadros de pintura, outros cupões dando direito à aquisição de escravos, bestas de carga, e mesmo animais selvagens domesticados e, por último, navios, casas e propriedades agrícolas”.
O pai Dassault, Marcel (1892-1986), fabricante de aviões de guerra, também comprava a populaça como o fazia Nero; não dava tanto nem tão variado, mas o objectivo era o mesmo.

O nababo limitava-se a oferecer pelo Natal fogões, frigoríficos, aparelhos de televisão e outros electrodomésticos. Em certas ocasiões mais conflituosas, uma nota de quinhentos (francos) estendida entre dois dedos, remediava a situação. A rapaziada do círculo político gaulista mais próximo que o vinha solicitar no seu palacete dos Campos Elíseos, lá se ia satisfeita com um envelope mais ou menos bem recheado em função dos serviços prestados… ou a prestar.

O pai Dassault ganhava as eleições como deputado do Oise (até à sua morte com 96 anos) sem fazer campanha e, no melhor dos casos, delegando a tarefa a um subalterno equipado com os imprescindíveis envelopes e dotado da verborreia necessária.

O pai Dassault não tinha tempo nem pachorra para gastar os fundilhos das calças nos assentos da bancada parlamentar; as suas raras aparições na Assembleia tinham algo de milagroso.

O pai Dassault só gostava mesmo a valer de… jornais, mais propriamente de revistas. Revistas de luxo, cheias de bisbilhotice de toda a espécie, de palavreado de café, de boas piadas inocentes, de meninas vestidas a preceito e de tenra idade, mas – credo! – tudo arredado das políticas…

O semanário Jours de France (1960-1989) de que foi proprietário, director, chefe de redacção e principal cronista, foi a sua obra maior! Confeccionado à antiga, como a marmelada caseira, nos vastos salões do palacete dos Campos Elíseos, era distribuído gratuitamente nas salas de espera dos consultórios de médicos e dentistas, nos salões dos cabeleireiros para senhoras e nos barbeiros.

O negócio da guerra

O pai Dassault ganhou rios de dinheiro a vender aviões de combate – Mystère, Mirage, Falcon, Rafale… – ao Estado francês e por esse mundo fora, por toda a parte onde havia guerras para alimentar, exércitos para equipar, aviadores para treinar…

O pai Dassault converteu os sucessivos presidentes da V República em caixeiros-viajantes ao serviço da sua firma que se tornou altamente especializada não só em aviação, mas também em electrónica e informática.
[A mais recente operação comercial de envergadura teve lugar no passado 6 de Setembro e foi conduzida a passo de ganso pelo presidente Sarkozy, resultando na venda de 36 aviões de combate Rafale ao Brasil do pobre Lula: um contrato de 3 a 4 mil milhões de euros, fora o armamento…]

O pai Dassault e família fazem parte da grande aristocracia republicana, são um puro produto da V República fundada em 1958 e que se mantém desde então sem grandes descontinuidades. O interregno social-democrata dos anos 80 pouco conta, pois, entre outras tibiezas, o governo de Mitterrand não ousou sequer atacar a constituição gaulista que o Partido Socialista sempre descreveu, em termos de propaganda, como “um golpe de estado permanente”.

Dassault alia, na mesma pessoa, funções políticas prestigiosas a grandes negociatas à sombra dos sucessivos governos tutelares. Como muitos outros gaullistas históricos, o nosso homem inicia a sua carreira fulgurante a partir da última guerra mundial. A família Dassault faz parte da fracção da burguesia que escolheu o campo de De Gaulle contra o governo colaboracionista de Vichy. Em 1944 conseguiu escapar do campo de concentração de Buchenval graças a Marcel Paul, chefe da organização de resistência clandestina do PCF e a Albert Baudet. Como bom investidor, Dassault nomeia mais tarde Baudet director da publicidade do semanário Jours de France; e, todos os anos, por altura da festa do jornal l’Humanité, órgão central do PCF, Dassault nunca se esqueceu de contribuir para o êxito da mesma com o seu óbolo, de que se desconhece o montante.

Uma vez mais como bom investidor, em 1981, para escapar à vaga de nacionalizações de pequena amplitude decretadas pelo governo do “programa comum”, oferece ao Estado 26% das suas acções.

Na esteira do pai

O filho Dassault, Serge, 82 anos, seguiu as peugadas do pai Marcel, linha por linha, ponto por ponto. Para já, é senador de Essonnes, por outras palavras, eleito pelos eleitos, para usufruir de uma visão panorâmica e contemplativa sobre o funcionamento da máquina executiva do Estado. Um lugar de luxo, reservado particularmente aos políticos caquécticos, retirados da política activa, ou ainda, mais raramente, para pagar um favor especial a este ou aquele político mais ambicioso.

O filho Dassault é também autarca local. Presidente da câmara da cidade operária de Corbeil-Essonnes desde 1995. Candidatou-se ao cargo por três vezes e por três vezes bateu a esquerda conduzida pelos candidatos do PCF que, noutros tempos, detinham o baluarte. Quase sempre por um triz, quase sempre à força de distribuir bagalhoça entre os pobres eleitores que querem ou sabem estender a mão na devida altura…

Mas o escrutínio de Março 2008, que o elegeu pela terceira vez por uma escassa diferença de 170 votos, acabou por ser anulado pelo Conselho de Estado que, além do mais, o condenou a um ano de inelegibilidade. Vale a pena tomar conhecimento da razão que levou o Conselho de Estado a contrariar e enervar o filho Dassault: “a existência de práticas de dádivas em dinheiro de uma amplitude significativa destinadas aos habitantes da vila (…) tendo podido afectar a livre determinação dos eleitores e alterar a sinceridade do escrutínio”. E, uma vez mais, cá temos a democracia em maus lençóis!

Agora, no passado dia 4 de Outubro, voltou-se a votar e o filho Dassault voltou a ganhar. Rés-vés! Desta vez por uma escassíssima diferença de 27 votos… Impedido legalmente de se candidatar, não esteve com meias-medidas: delegou no seu homem de confiança, Jean-Pierre Bechter, director delegado do grupo Dassault (“Votar Bechter, é votar Dassault”, proclama ufano o fantoche!), a missão de ganhar a partida custasse o que custasse. Resultado: 5 190 votos a favor, 5 163 para o adversário, candidato do PCF… e cerca de 50% de abstenções!
Felizmente, o pessoal não é parvo de todo!

Contribuição lusa

Nestas eleições de Corbeil-Essonnes, apareceram, destacados, vários luso-descendentes; uns, apoiantes do filho Dassult, outros, alinhados com a esquerda unida chefiada pelo candidato do PCF. Entre os alinhados com o filho Dassault, figura Cristela de Oliveira, uma jovem que dá nas vistas pela carreira fulgurante que vai tecendo no seio do partido sarkozista, tanto ao nível local e regional como nacional.

Enquanto se espera uma provável nova anulação, o periódico Luso Jornal faz saber, na sua edição de 7 de Outubro, que a nossa Cristela franco-nacional vai assumir o cargo de “primeira-presidenta-adjunta” no novo gabinete, após esta tremenda batalha eleitoral na qual ela se empenhou com “um único objectivo: limpar a imagem de Serge Dassault”…

Infelizmente, continuamos, por estas bandas, a bater recordes em matéria de veneradores e mulheres de limpeza… damned!


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