«O ministro não sabe pescar»

M. Costa / F. Cabral — 13 Junho 2008

Fomos a Quarteira, em pleno lockout dos armadores (a que a comunicação social chamou «greve dos pescadores»). Pescadores, empregados e patrões, juntavam-se indistintamente no largo entre a lota e a Praça do Peixe, de atalaia, com o objectivo de impedir que aí fosse descarregado peixe encomendado pelos comerciantes para tentarem boicotar a sua luta. Pedimos para falar com pescadores: das duas primeiras vezes, dirigiram-se a nós pequenos armadores. Para conseguirmos entrevistar um pescador operário, tivemos que explicitar que gostaríamos de falar com pescadores «que só fossem empregados».

«Pelo menos, devolvam-nos a ‘caldeirada’»

Há dois anos e meio, em nome do dito sacrifício para redução do défice, pedido a todos os portugueses, o Governo de Sócrates tirou-lhes a «caldeirada», ou seja, o direito de poderem dispor livremente de 15 a 20% do que pescam (consoante o tamanho da empresa). Desde aí, pagam impostos sobre a totalidade do pescado entregue na lota, sujeitando-se às manobras especulativas daqueles que controlam o leilão aí efectuado.

Chegam a deixar lá a faneca a 5 cêntimos o quilo, para poucas horas depois a verem ser vendida a 5 euros, ali mesmo ao lado, na Praça do Peixe de Quarteira, cujas bancas estão nas mãos de umas poucas famílias de comerciantes – que, assim, vão enriquecendo à sua custa. Por isso, têm vindo a exigir que o Governo fixe o preço mínimo do peixe, na lota, gerida por uma empresa de capitais exclusivamente públicos, a Doca Pesca.

A esta proposta, os governantes têm respondido que não podem intervir nas regras do mercado: «Qual mercado? O desta gente que vive à nossa custa?». Sobre a pesca entregue, o pequeno armador tem de tirar, à cabeça, 22% para o pagamento de taxas fixas, incluindo a Segurança Social (como nos dizia Júlio, «deve ser a única actividade económica do país em que a Segurança Social é paga sobre a facturação»), mais cerca de 20% para os custos de produção (em que, actualmente, pesa sobretudo o combustível). Depois, divide ao meio os restantes 58%, por si e pela «companha».

Habituados a não serem ouvidos, os pequenos armadores com quem falámos revoltam-se com a oferta, pelo Governo, de uma linha de crédito: já estão tão entalados que mais lhes parece uma armadilha. Também não acreditam que das negociações resultem combustíveis mais baratos e insurgem-se contra a mentira do ministro, segundo a qual o Governo já subsidia o preço do combustível para a pesca: na realidade, isso só acontece com o gasóleo, usado nos grandes barcos – a maior parte dos armadores do Algarve, com companhas entre os três e os catorze homens, trabalha em barcos movidos a gasolina, paga ao preço normal. Quando aceitaram a perda da «caldeirada», o combustível estava a um terço do preço que pagam hoje.

«Há-de haver semanas que vou ao mar para trabalhar só para o combustível»

O aumento brutal do preço dos combustíveis desencadeou uma zanga mais antiga e mais funda. Manuel Martins, pescador, desabafou: «Há dias em que levo menos de 15 euros para casa. Tenho mulher e dois filhos. Como é que não hei-de estar revoltado?» Perguntamos-lhe se os pescadores e os armadores têm exactamente os mesmos problemas. Responde, sem hesitação: «Têm.» E apresenta-nos, na 1ª pessoa do plural, as mesmas contas do armador, relativamente aos impostos e à distribuição do rendimento obtido com o pescado: «Em 100 euros de pesca que vendemos, damos 22% à lota. Já só ficam 80. Desses 80, pagamos a isca e o combustível. São mais 20 euros. Sobram 60 euros, que são divididos ao meio: 30 para o patrão, 30 para os camaradas.»

Chamamos a atenção para o facto de, nessas contas, os pescadores estarem a suportar os custos de produção. Considera isso normal: «Se o barco não tiver combustível, não tenho trabalho.» Pergunto-lhe se está em greve. Não responde directamente, preferindo assinalar que está solidário com a luta do patrão. Dizemos-lhe que alguns armadores anunciaram, na televisão, a possibilidade de terem de despedir os seus empregados, no caso de a luta se prolongar, de forma a garantir que, pelo menos, recebam o subsídio de desemprego. Espera não ter de chegar a esse ponto, mas afirma compreender que o patrão não possa pagar-lhe indefinidamente, no caso de o braço de ferro com o Governo durar muito mais. Seja como for, como o subsídio só chegaria 2 ou 3 meses depois, seria uma má solução para quem tem de alimentar diariamente a família.

Remata com um desabafo, em total sintonia com o que tínhamos ouvido a um armador: «Tudo vive à custa do pescador.» E acrescenta: «Veja bem: para ser pescador, tenho de ter uma cédula marítima. Então, eu fui tirar a carta profissional. No fim do curso obrigatório, o Estado deu-me 60 euros, mas depois eu tive de dar 70 euros para ir a exame. Por isso, para me autorizar a trabalhar na minha profissão, o Estado roubou-me 10 euros.»


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