Uma luta que transcende o jornalismo

Rui Pereira, jornalista — 7 Setembro 2007

maquinaescrever.jpgO veto pelo Presidente da República do Estatuto do Jornalista (Agosto de 2007) é o mais recente desenvolvimento da polémica que os socialistas abriram com os jornalistas, através da controversa proposta de um novo enquadramento para a profissão. Enquanto diploma legal que regula os termos em que o jornalismo é exercido, os direitos e os deveres dos seus profissionais, o Estatuto do Jornalista é um documento sensível.

Para além das alterações às disposições mais propriamente sindicais—corporativas, formação académica entre as condições de acesso à profissão, matérias relacionadas com direitos de autor, disciplina profissional etc., a zona de polémica instalou-se especialmente em torno do problema das fontes. Mais concretamente, na divulgação da sua identidade pelos jornalistas quando a isso instados pelos tribunais.

No ponto 3 do seu artigo 11, o novo Estatuto determina que a revelação das fontes de informação é obrigatória em casos de “crimes graves contra as pessoas […] nomeadamente, crimes dolosos contra a vida e a integridade física”, bem como em casos de “de crimes graves contra a segurança do Estado ou de casos graves de criminalidade organizada”.

O Sindicato dos Jornalistas contesta, entre outros, este artigo. O “grau de subjectividade” nas definições dos casos em que um tribunal pode obrigar o jornalista a violar o “sigilo profissional”, que existe também para os médicos e os advogados, pode acabar pura e simplesmente com esse princípio, diz o Sindicato. De nada valerá a lei consagrar que os jornalistas têm o direito e o dever de sigilo profissional, se depois mandata em termos tão vagos os tribunais para obrigarem à sua violação.

O Governo, por seu lado, alega que ao determinar os casos em que os juízes podem ordenar a violação do sigilo profissional estão a “arrumar” a casa e, na prática a limitar com maior precisão as matérias em que os jornalistas podem ver-se obrigados a revelar as fontes.

Não se vê, porém, de que maneira formulações tão vagas como “crimes graves contra as pessoas” ou “contra a Segurança do Estado”, por exemplo, podem ser consideradas uma definição mais precisa. Como se limita o conceito de “crime doloso contra a integridade física”? Que quer isso dizer?… Estes pequenos “nadas” que são, na verdade, imensos “tudos” têm conduzido a movimentações de protestos entre a classe profissional dos jornalistas como há muito não se viam.

Um combate sem inocentes

O problema do Estatuto dos jornalistas não existe, todavia, separadamente do ambiente político e cultural que se vive. Internacionalmente, o clima de paranóia e de permanente violação dos direitos humanos e, entre eles, do direito a informar e ser informado, derivado da chamada “guerra contra o terrorismo” tem originado, a começar pelos Estados Unidos da América, quadros repressivos quase inéditos.

Já entre nós, redacções invadidas, como no caso do “24H” a propósito das disquetes sobre escutas no processo Casa Pia, delação fiscal promovida pelo Ministério das Finanças, gente processada e efectivamente punida por comentários sobre o “senhor primeiro-ministro de Portugal” (na expressão da burocrata-mor da Direcção Regional do Ensino do Norte), outra gente demitida pelo ministro da tutela por não ter retirado uma fotocópia da parede de um remoto Centro de Saúde nas proximidades da Galiza. Por estes dias uma senhora secretária de Estado ironizava com todo um país com um historial total de séculos de encarceramento para quantos até tão recentemente lutaram pelas liberdades, afirmando jocosamente que se pode dizer mal do governo, sim, mas no café ou em casa… Clima de reinstauração do velho e bafiento “respeitinho”, onde uma simples anedota, para já não falar de uma crítica, corre o risco de sair cara a quem ouse enunciá-la.

A grande realização deste Estatuto do Jornalista consiste, assim, na consagração no normal uso legislativo daquilo que até aqui nos habituáramos a ter por abuso excepcional e inaceitável: a delação da fonte pelo repórter. Esta é, aliás, a regra básica da degradação das relações sociais, a que assistimos nas mais diversas áreas da vida, a banalização hoje do intolerável de ontem.

É evidente que, no caso do jornalismo, o simples risco de instituir uma tal normalidade provocará uma tendência acentuada para a retracção das fontes. A A violação do segredo profissional pode, assim, funcionar para os poderes totalitários da actualidade como uma alternativa mais vantajosa do que a censura pura e dura de outrora.

Porque como sem água não há vida, também sem fontes não há jornalismo. O que, sim, parece haver é um número de jornalistas, capaz de surpreender os mais desatentos, aparentemente dispostos a transformar em actos de desobediência civil a protecção da identidade das suas fontes e a defesa do seu sigilo profissional. É uma luta que está aí. Que pode aproximar produtores e receptores de informação na medida em que estes têm, ao lado das estruturas dos jornalistas, um papel essencial de apoio de que não podem demitir-se.


Comentários dos leitores

João Mesquita 10/10/2007, 12:23

O Estatuto do Jornalista faz, a meu ver, parte de um edifício que começou a ser construído com a instalação da Entidade Reguladora da Comunicação (ERC), prosseguiu com a extinção da Caixa de Previdência dos Jornalistas, e marcha agora em paralelo com a revisão do Código Penal e com as novas leis da rádio e da televisão. Trata-se de uma ofensiva sem precedentes, não apenas contra os direitos políticos e sociais dos jornalistas, como também contra o direito dos cidadãos a serem informados. Ofensiva que, a meu ver, tem tido uma resposta muito insuficiente da classe, cujas causas poderiam e deveriam ser objecto de debate — também aqui nas páginas do "Mudar de vida". Por mim, estou disponível para ele.
João Mesquita


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