Nova crise, nova troika

Manuel Raposo — 2 Junho 2020

Juntemos factos.
Perante as medidas de excepção tomadas em Março, Rui Rio declarou completa concordância com o Governo e anunciou a necessidade de um “governo de salvação nacional”. Foi moderado a ponto de negar a ambição do PSD de integrar um tal governo, mas suficientemente explícito para significar que as tarefas futuras da governação não prescindem do concurso do seu partido.

Recentemente, numa declaração que muitos acharam extemporânea, António Costa manifestou o apoio do PS à recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa, dando o facto como certo antes mesmo de o próprio se ter pronunciado sobre as próximas eleições presidenciais.

Dias depois, numa espécie de balanço político sobre o comportamento partidário durante o estado de emergência, o presidente da República fez o elogio público da posição de Rui Rio, apontando-o como modelo de oposição “responsável”.

Resumindo: Rio dispõe-se a governar com Costa, Costa reconduz Marcelo (sabendo que Rio fará o mesmo), Marcelo declara Rio o exemplo de colaboração institucional. Círculo fechado. Está montado o andaime de uma nova troika, ou, se quisermos à portuguesa, troica.

O patronato só pode ficar satisfeito. Quando em final de 2017 o PSD estava para mudar de direcção, a CIP, pela voz de António Saraiva, sugeriu que o “novo PSD” deveria abandonar a sua política “errática” e apoiar o governo de António Costa para que este deixasse de estar “refém” da esquerda parlamentar. Na altura não se adivinhava o coronavírus, mas já se previa que uma nova crise iria abalar o mundo dos negócios. Para lhe responder, o patronato sabia que era preciso não apenas estabilidade política, mas também unidade das forças do poder.

Até agora, a coberto da pandemia, os patrões tiveram o bodo de um estado de emergência que lhes reduziu gastos salariais e drenou milhões de euros do Orçamento do Estado para as tesourarias das empresas. Mais: que proibiu greves e manifestações e, desse modo, encobriu despedimentos maciços à margem da lei, precisamente porque a capacidade de resistência, e até de simples denúncia, por parte dos trabalhadores ficou coarctada.

Mas o poder político-patronal sabe que vai enfrentar, quando o nevoeiro da pandemia dispersar, um país em cacos.

Por um lado, a crise social está instalada — desemprego, quebras salariais, maiores desigualdades, fome. A magra recuperação verificada entre 2015 e 2018, tudo indica, será varrida e outras perdas mais se lhe somarão. E esta situação será seguramente caldo para protestos de massas, como se viu a partir de 2012 diante da austeridade promovida por Coelho e Portas.

Por outro lado, são evidentes os sinais de quase colapso do tecido económico capitalista — razia nas pequenas empresas (e não tão pequenas), afundamento do turismo, quebra nas exportações, contracção do mercado interno, maior dependência da finança internacional, risco de rompimento nas cadeias de abastecimento, falta de equipamentos e matérias primas, etc. É o que transparece nas preocupações do patronato, quando, nos seus apelos aos apoios do Estado, sublinha que é preciso “não deixar a economia morrer”.

No plano político, isto quer dizer que não vai repetir-se o clima de relativa bonança que permitiu ao primeiro governo de António Costa levar a cabo um arremedo de recuperação de rendimentos dos trabalhadores — não vai repetir-se nem nas condições internas, nem no quadro internacional.

Por outras palavras, as medidas da parte do poder para responder à situação dos próximos anos não vão ser meigas, por muito que António Costa tente desdramatizar o caso. E é para isso que a nova troica se torna útil. Hoje, por maioria de razão, não basta ao patronato estabilidade política, é também precisa, mais que nunca, união política das forças partidárias que o representam.

O porquê e o para quê da união nacional a três que se esboçou nas últimas semanas percebe-se se entendermos que as classes dominantes se preparam para a aplicação de medidas duríssimas sobre as classes trabalhadoras (activas, no desemprego ou pensionistas), e que, consequentemente, o poder se previne para a eventualidade de tumultos sociais daí decorrentes.

Manter a burguesia unida e a uma só voz, eis o papel da nova troica. Está assim lançado um desafio ao mundo do trabalho: unir, por seu lado, as forças necessárias para responder à altura da situação.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 3/6/2020, 11:56

DEMÉRITOS
1 - Se o "coronavirus" - ou, se se quiser, o covid-19 - trouxe consigo uma série razoável de "deméritos", teve contudo o "mérito" de nos mostrar - à evidência - como a nossa MÁQUINA PRODUTIVA está mais que enferrujada e incapaz de nos assegurar uma "vida decente" como, aliás, o Capitalismo nos diz ser capaz de o fazer (Será?).
O nosso País - da "Alice no país das maravilhas" que a "Europa connosco" nos vem fantasiando já vai para meio século, tanto como o do Salazar de má memória - caiu por terra e estamos confrontados seriamente com uma "pobreza franciscana" que não dá para pôr na mesa da maioria dos portugueses uma refeição decente sem a ajuda dum batalhão de Senhoras Isabel Jonet.
2 - Mas temos que admitir que a "FANTASIA" é coisa poderosa: mesmo em plena CRISE - que se adivinha prolongada - as "bolas são chutadas para fora" e o "silêncio é de ouro". Mas não deixa de parecer igualmente certo que a nossa sábia Burguesia não se sente "confortável". E mais: não vislumbra como tudo isto "se vai, ou pode, resolver". A Produção caseira não dá nem para atamancar as "exigências" do dia-a-dia e sem umas "esmolas" - as do costume - que caiam do céu - ou do inferno da DÍVIDA - a coisa não vai lá. E por isso, é que pode vir daí o tal "diabo" de que se falava há uns tempos.
3 - Admito estar enganado mas, em épocas de crise, até a paz inter-burguesa se esboroa com acelerar das contradições: como se diz "A fome e o frio põem a lebre a caminho". E, em primeiro lugar, as questões do APARELHO PRODUTIVO sobem à cena o que parece anunciar que os Financeiro-Rentistas "perdem peso". O seu PAPEL, em si, já não é solução que se veja: o que se vê é a necessidade de PRODUÇÃO de BENS. E talvez seja por isso - ou não?... - a razão porque subiu ao palco o Prof. Eng. António Costa Silva.
4 - Em minha fraca opinião, valia a pena "esclarecer" o significado desta "reviravolta mediática" - coisa que o MV poderia "avançar" - e apreciar sua "realidade e ficção". E os "Positivistas lógicos", melhor que ninguém, talvez pudessem esclarecer seus "propósitos" ocultos. Ou então e como nos ensinou CARNAP, talvez tudo não passe de uma questão de "má sintaxe".


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