A imprensa no turbilhão da pandemia

Urbano de Campos — 16 Abril 2020

No dia 2 deste mês, directores de jornais e revistas lançaram um apelo público contra a difusão electrónica, que se tornou geral e aumentou com as medidas de confinamento, das edições desses mesmos jornais e revistas. Chamam eles “pirataria” e “crime” a essa difusão, que acusam de pôr em causa a “sustentabilidade da imprensa em Portugal”. Juram bater-se por “informação credível” e pela difusão dos “melhores conteúdos”. E explicam aos leitores que “Para conseguirmos manter a qualidade precisamos da sua colaboração no combate à pirataria”. A colaboração que pedem aos leitores resume-se a isto: se querem ler, paguem.

O texto do apelo assenta nos mitos de que se revestem a imprensa e os meios de comunicação em geral: liberdade, qualidade informativa, credibilidade, independência do poder e dos poderes, serviço público… Mas estas supostas qualidades são precisamente as que é raro ver nos meios de comunicação empresariais. Expliquemo-nos.

1. Pirataria? Chamar pirataria e crime à difusão livre de informação, e culpá-la da falência da imprensa, é uma chantagem e uma ameaça. O facto é que o jornal-mercadoria de outrora perdeu peso pela própria evolução tecnológica, e essa é a razão da falta de receitas — não a “pirataria”.

2. Informação livre e independente? Quase todos os jornais e revistas, seguramente todos os de larga difusão, são propriedade de grandes grupos económicos que juntam nas suas mãos títulos diversos em papel (e ainda rádios, televisões e redes electrónicas), dirigidos a públicos diferenciados. Tirando um ou dois casos, os vinte e tal órgãos subscritores do apelo pertencem a 5 grupos empresariais que dominam a comunicação no país.

O propósito destes grupos está à vista: forjar uma elite de opinadores omnipresentes, fabricar no público uma opinião dominante moldada pelos seus próprios critérios políticos e ideológicos. Se assim não fosse, que razão teria um cavaleiro da indústria e do comércio como Belmiro de Azevedo, por exemplo, para fundar um jornal como o Público? Ou Balsemão, para lançar o Expresso e a Sic? Ou, noutro plano, os patrões do Pingo Doce para promover a Pordata e a colecção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos?

A importância de assegurar este ascendente sobre a chamada “opinião pública” — utilíssimo para manter a estabilidade do poder e condicionar as escolhas em momentos eleitorais — explica os negócios de milhões que se fazem para monopolizar a informação. Exemplo recente: a tentativa de compra da Média Capital (TVI) pela Cofina (CM, CMTV).

3. Sustentabilidade? O apelo destina-se a convencer os leitores de que têm de pagar o “serviço público” que lhes é impingido, sem que eles o possam controlar. Na verdade, não há serviço público nenhum. Os leitores são, simplesmente, convidados a suportar parte dos prejuízos de uma mercadoria que, pela ordem natural da concorrência e da lógica capitalista, perdeu valor. É isto que a invocação dos direitos de autor, no caso, esconde.

Ora, na lógica empresarial desta imprensa, das duas uma: ou o negócio rende, e segue o seu curso; ou o negócio não rende, e fecha portas. Fora desta lógica só há uma alternativa: uma imprensa (meios de comunicação em geral) de serviço popular, sob escrutínio e controlo popular. (*)

4. Manter a qualidade? Fica-se sem saber de que qualidade se fala quando se coloca lado a lado o Jornal de Letras e o Correio da Manhã, para citar dois dos signatários. O traço comum, no entanto, existe: ele está na pertença de cada um dos títulos a um grande grupo empresarial: o grupo Trust In News (uma dúzia de títulos) e o grupo Cofina (uma dúzia de títulos, incluindo um canal TV). Daí a causa comum.

5. Informação credível? A maioria dos directores e editorialistas são escolhidos, não pela sua independência ou originalidade de ideias, mas pela sua fidelidade aos propósitos de formação da dita “opinião pública”. Muitos são simples serventuários dos grandes senhores, dos donos do país, alinham com as vozes dos poderosos (nacionais ou estrangeiros), são a sua expressão, ou servem nas guerras de poder entre eles.

A liberdade editorial de que juram gozar diante dos seus patrões resume-se, as mais das vezes, à habilidade de adivinharem antecipadamente a linha geral a que devem obedecer, sem terem de receber ordens expressas.

É pelo diapasão desta linha geral que a maioria dos jornalistas — reduzidos quase todos à condição de simples redactores — afina, muitas vezes coagidos pelo espectro do despedimento.

A variedade de comentadores que as páginas dos jornais exibe, longe de influenciar aquela linha geral, é uma capa de “pluralidade” para fazer passar o essencial das vozes dominantes.

6. Apelar aos leitores para pararem a partilha nas redes sociais e pagarem os défices empresariais da imprensa escrita, como se se tratasse da defesa de um bem comum — é não só inútil como imoral. Inútil, porque as ferramentas de comunicação disponíveis (as verdadeiras concorrentes da imprensa escrita) não vão deixar de ser usadas em todas as suas vertentes. Imoral, porque o apelo é feito em defesa dos grandes grupos e dos grandes títulos.

De lado, por exemplo, fica toda a imprensa regional. Esta sim, boa e má, já está a sofrer uma verdadeira hecatombe no momento que passa. Mas por ela nenhum dos signatários do apelo levanta a voz — o que só por si mostra o interesse que os move.

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(*) Indiferente a tais miudezas, o BE propôs (9 de Abril) a atribuição à comunicação social, por junto, de um pacote de 15 milhões de euros, nos meses de Maio, Junho e Julho, justificando a medida com “a necessidade de órgãos de comunicação social robustos e capazes de prestarem serviço informativo”.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves@ 16/4/2020, 14:43

A imprensa actual como toda a gente, não pode escapar à crise que numtempo, quem sabe?, apropriado assolou todo o sistema vigente. Sabe-se desde sempre que o seu papel e função social nunca foi outro do que manipular e alienar os leitores que no desjo de se informar eram bombardeados com opiniões vulgares e mediocres, relativamente bem pagas, escritas por pessoas da confiança do patronato e que se tinham, na maior parte das vezes como sujeitos de uma elite ilustrada. Agora aparecem a proclamar o direito da população a "uma imprensa livre" e a reclamar o uso "abusivo" das redes digitais, esquecendo-se que os utilizadores para o fazerem pagam do seu bolso a respectiva mensalidade estabelecida no contrato com a empresa que a explora e mesmo assim ainda fica sujeito à censura da sua administração. Que estes srs.(as) se convençam que o direito à liberdade de todos é mais importante que o privilégio de ser propriedade só de alguns.

leonel clérigo 17/4/2020, 10:26

O texto acima do Urbano Campos chamou-me a atenção para uma questão que nunca tinha consciencializado.
De manhã e já lá vai largo tempo, quando venho vasculhar "os jornais do dia" trago e até agora sem consciência disso, uma caixa de "pastilhas Rennie" - para alivio rápido e eficaz dos sintomas de azia e indigestão - que coloco na mesa ao lado do computador. Mas será que a leitura das "análises objectivas" têm sempre esse efeito?...

jml 18/4/2020, 14:27

Concordo com o texto e com os comentários, mas a situação exige muito mais de nós.
Assim sendo acho que o momento e a gravidade que a nova ofensiva capitalista em preparação contra a classe trabalhadora, exige que tudo façamos por organizar um ENCONTRO onde a possamos discutir e decidir como agir.
Um abraço para todos vós

leonel clérigo 18/4/2020, 16:59

Como é possível uma Sociedade que se rege e sobrevive com a "exploração do trabalho do trabalho alheio", assumir-se"- com toda a desfaçatez - como "DEMOCRÁTICA"?
O Jornalista Jorge Almeida Fernandes que nos "faça luz" sobre esta "contradição em termos"...


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