A ‘racionalidade económica’, segundo Saraiva

Manuel Raposo — 10 Dezembro 2019

O mandatário dos patrões da Indústria, António Saraiva, presidente da CIP, condenou a decisão do Governo de subir o salário mínimo como sendo uma medida meramente “política”, com o único resultado de o Estado arrecadar mais uns milhões em impostos. Mas, sobretudo, criticou aquilo que ele, Saraiva, diz ser uma decisão “sem racionalidade económica”. O homem da CIP não explicou o seu conceito de “racionalidade económica”, mas não é difícil adivinhá-lo.

Vamos por partes.
Primeiro. Com é do senso comum, quando os salários sobem, mantendo-se o mesmo nível de produção, diminuem os lucros do capital. É contra isto, desde logo, que Saraiva se insurge e é isso que o leva a desclassificar como “política” a decisão do Governo.

Mas pode ver-se uma “racionalidade económica” na medida: aumentar a parte dos salários na repartição do excedente de modo a fazer subir o poder de compra da população assalariada. É claro que os patrões gostam de ver o poder de compra aumentado porque, de uma forma geral, isso se traduz em mais vendas — mas não à custa de terem, eles, de pagar salários mais altos. Esta contrariedade obviamente não agrada ao patronato, mas, que remédio, ela é a quadratura do círculo do próprio capitalismo.

Segundo. Na boca dos patrões e dos economistas há uma frase que se tornou slogan de todas as horas: é preciso crescer para distribuir. Só nesta condição, dizem os diversos Saraivas, se pode subir salários. A “racionalidade” do slogan é esta: só quando os lucros crescerem pode o capital dispensar uma parte deles para aumentar salários.

De facto, o crescimento económico mede-se pelo aumento do excedente produzido. Mas é bom lembrar que esse excedente é excedente social. Apenas o direito jurídico que os patrões detêm sobre a riqueza pública lhes permite contabilizar esse excedente social como acumulação de capital, como bem privado.

A “racionalidade” a que Saraiva se reporta, sem a explicitar, resume-se portanto ao direito de propriedade de que os patrões gozam e que lhes dá o poder de serem eles a determinar o que fica como lucro e o que vai, eventualmente, para aumento de salários. Trata-se pois de uma “racionalidade” meramente jurídico-política — noutros termos, a defesa de um privilégio.

Terceiro. Apenas num sentido se pode dar razão a António Saraiva. Na verdade, a relação entre salários e lucros não é determinada por qualquer “racionalidade económica”, mas sim pela luta que se trava pela apropriação do excedente. É uma luta de classes antagónicas, em que uma se apropria do valor que não paga pelo trabalho, e a outra reivindica o que é legitimamente seu.

Quarto. Foi nesta luta que o Governo decidiu interferir para evitar males maiores. Males, não tanto de natureza económica, mas de natureza social e política. Avançando com um valor irrisório, muito aquém do que era exigido como razoável (com excepção, claro, da UGT, sempre disposta a fretes) o Governo joga em dois tabuleiros: consegue que o patronato, apesar das lamúrias, encaixe sem problemas o aumento; e procura calar muita gente com o argumento de que mais vale isto que nada, tentando retirar base à acção reivindicativa e sindical.

O Governo cumpriu assim o seu papel de defender os interesses do patronato em geral, como classe. Saraiva, a CIP e a generalidade dos patrões foram, por isso, injustos e deviam estar-lhe agradecidos. Quanto mais não seja pela “racionalidade social” demonstrada.

Quinto. Finalmente, as queixas patronais revelam aquilo que verdadeiramente pretendem. Nas conversas em curso na Concertação Social e à volta do Orçamento do Estado, os patrões regateiam compensações por parte do Governo que acabem por anular o efeito do aumento do salário mínimo. As contas públicas servem, assim, as contas privadas. Fecha-se o círculo na perfeição: o Governo ganha popularidade ao “dar” mais dinheiro ao povo pela porta da frente, e o capital, sem que o povo dê por isso, é compensado das “perdas” pela porta de trás.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 10/12/2019, 14:56

Com a degradação imparável do sistema social em cada dia que passa,, governo e patronato, duas faces da mesma moeda, tentam iludir a arraia miúda que os problemas actuais da sociedade se remendam com caldos de galinha A prioridade das prioridades são várias ao mesmo tempo, As alteraçôes climáticas tornam-se o calcanhar de Aquiles do próprio sistema e as falências das empresas sucedem-se num torrencial incontrolável. Claro que sectores ligados à extrema direita, forças militares e par-militares, encontram terreno fértil para travar este descontrolo político que a dita esquerda social-democrata aliada às forças do arco de governação, agora alargado a praticamente todo o parlamento, ficam de súbito numa paralizia total. Assim nesta incapacidade imparável o país e o seus néscios comperes apressam-se a agudizar a situação até ao embate final.


Envie-nos o seu comentário

O seu email não será divulgado. Todos os campos são necessários.

< Voltar