A vitória eleitoral do PS, ou o futuro hipotecado

António Louçã — 9 Junho 2019

É precisa a maior cara de pau para festejar uma votação em que quase 70 por cento do eleitorado foi à praia ou ficou em casa, enquanto a participação eleitoral subia na maior parte da Europa. E, no entanto, foi com essa cara que o PS comentou o resultado das eleições europeias de 26 de maio.

Com a recordação ainda viva dos quatro anos da troika, dos seus brutais aumentos de impostos e dos igualmente brutais cortes nos salários e nas pensões, não era difícil ter mais votos do que a direita. Ainda por cima, o PS teve a astúcia de esconder Sócrates, enquanto o PSD tinha a inépcia de exibir Passos Coelho e o CDS a de escolher Nuno Melo. O PS sabe esconder os espantalhos socialistas, mas a nossa direita, básica e bronca como é, passeia na praça pública os espantalhos neoliberais e protofascistas. E tem de ser um presidente da direita a despertar os seus correligionários para a realidade de se encontrarem “em crise”.

Mas a aparente façanha do PS, de ser um dos raros partidos que constitui governo em minoria e ao fim de quatro anos ganha folgadamente uma eleição, esconde essa outra realidade de o PS ter ganho muito poucos votos em relação às europeias de 2014 e ter perdido mais de 700.000 votos em relação às legislativas de2015 — essas mesmas em que conseguira ser derrotado apesar da governação da troika.

A verdade é que a geringonça optou por um caminho diferente da política troikista desastradamente prometida por António Costa na campanha eleitoral de 2015. As circunstâncias e o instinto de sobrevivência levaram o PS por outro caminho que não era, simplesmente, mais do mesmo. Graças a essa contrariedade, o PS sujeitou-se a moderar a rapina fiscal (excepto nos assaltos de estrada), a parar os cortes salariais e a devolver uma parte do que fora esbulhado. Se poucos eleitores sacrificaram a praia para votar no PS, ainda menos a sacrificaram para manifestarem saudades da direita.

Acontece que esta diferença involuntária face à direita não faz do PS uma garantia de bom senso para a governação dos próximos anos. A receita da geringonça para meter o Rossio na Betesga — travar os cortes salariais e ao mesmo tempo obedecer às metas orçamentais impostas por Bruxelas — foi a de abandonar os serviços públicos. Ao mesmo tempo que suspendiam os roubos do salário directo, Centeno e Costa intensificavam o esvaziamento do salário indirecto, ou seja, as prestações sociais para as quais descontamos.

Como a degradação do salário indirecto é menos visível e só com o tempo se torna estrondosa, o PS ainda colheu nestas eleições, e poderá colher nas próximas, o fruto fácil dessa nuance política em relação à direita. Mas a ponta do iceberg já vai emergindo, nas listas de espera dos hospitais públicos, nas promessas incumpridas feitas aos professores, no suplício que é tirar o Cartão de Cidadão, na degradação galopante dos transportes públicos.

Isto, que vemos agora, é uma pálida amostra do que o PS almeja para a próxima legislatura. O reforço da sua percentagem eleitoral e da sua representação parlamentar (diferente, como vimos, de um reforço da votação) deverá servir-lhe para prescindir dos apoios do BE, do PCP e do PEV. Não foi por acaso que, logo a seguir ao 26 de maio, começou a sondar o PAN para alguma aproximação que sempre lhe sairia mais barata do que negociar com os partidos da esquerda, lhe deixaria as mãos livres para novas medidas de austeridade e o libertaria da pressão de parceiros de maioria incomodados com o descalabro dos serviços públicos.

Ao mesmo tempo que acena ao PAN com algum acordo de tipo queijo limiano, o PS rói a corda ao BE no tocante à Lei de Bases da Saúde, recuando sobre a sua própria posição quanto às PPP. Isso, e a sistemática sabotagem governamental dos acordos sobre a integração de precários, deveriam constituir para o BE um sinal de alarme sobre a estratégia do PS, que consiste em libertar-se dos seus parceiros de maioria, e não em fazer um upgrade da aliança, com eventual participação a nível do executivo.

A votação do BE pode em boa parte resultar da capacidade negocial que tem mostrado, arrancando em vários diplomas concessões que não saíam demasiado caras ao Governo. E essa capacidade concreta rendeu mais dividendos políticos do que a atitude do PCP, de aprovar os orçamentos todos e de votar vencido em muitas outras questões, quase sem disputar alterações na especialidade. E é certo que a consequência lógica de arrancar pequenas concessões no parlamento seria o tal upgrade, com a assunção de responsabilidades executivas e, supostamente, a capacidade de influenciar grandes opções, como por exemplo as da lei laboral. Para aí aponta, em todo o caso, a orientação aprovada na última Convenção do BE.

Mas essa estratégia apresenta um conhecido problema de fundo (quem entra num governo do PS torna-se seu refém e perde mais influência do que ganha) e um problema mais imediato: o PS não está para aí virado e considera dispensável introduzir no Governo as discussões que já no parlamento lhe esgotam a paciência. A disputa de pequenas reformas em comissões parlamentares, estando provavelmente na base do relativo sucesso eleitoral do BE, não deixará de tornar-se um factor de frustração — do partido e do seu eleitorado — assim que o passo seguinte da estratégia esbarrar na porta fechada que era suposto dar acesso ao Governo.

Quanto ao PCP, não corre o risco de sofrer essa frustração, porque não parece alimentar ilusões sobre uma eventual entrada no Governo, mas sofreu uma penalização pesada por não ter tirado partido do seu principal trunfo — a influência no movimento sindical, num momento em que até pequenas organizações têm sido suficientes para desencadear processos de luta importantes. Apesar de toda essa influência, o PCP ficou à margem das lutas dos enfermeiros, dos estivadores e dos motoristas de matérias perigosas. Na luta dos professores, privilegiou os protestos de rua, as concentrações, as vigílias — e pôs de lado a arma realmente eficaz que teria sido a da greve às avaliações.

A geringonça não foi uma lua de mel entre o povo e o Governo, mas teve, a espaços, a coloração de uma trégua precária entre ambos. A partir de outubro, o PS quer poder dizer em Bruxelas, pela voz de Centeno, que a seu modo também sabe ir além da troika e também sabe ser bom aluno. Para isso está em campanha com o objectivo de reforçar as suas posições na Assembleia da República e de dispensar, tanto quanto possível, qualquer negociação com os seus parceiros de até aqui.


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