Um encadeado de oportunismos de soma zero

Urbano de Campos — 10 Maio 2019

A luta partidária travada em torno das reivindicações do professores é um exemplo vivo de oportunismo político e de cretinismo parlamentar como há muito não se via. É por isso uma lição sobre a política nacional e sobre o alcance da “democracia representativa” que a burguesia vende como o supra-sumo da nossa organização social. Uma lição, sobretudo, para os trabalhadores acerca de como os seus interesses são usados na arena partidária e o que significa delegar no jogo de forças parlamentares a defesa das suas exigências de classe.

O que está em jogo?
Como se sabe, os professores exigem a contagem integral do tempo de serviço (mais de 9 anos) congelado com as medidas de austeridade. Governo e PS, com o argumento do “equilíbrio orçamental”, apenas concedem uma parte desse tempo, tal como para o restante funcionalismo. Num entendimento inédito, todos os partidos com assento na Assembleia da República aprovaram, numa comissão parlamentar, a exigência integral dos professores, isolando o Governo. Acto contínuo, António Costa ameaçou demitir-se.

Qual foi o cálculo do PS?
O PS contava com a direita (PSD e CDS) para derrotar a pretensão dos professores e os seus aliados à esquerda (PCP, PEV e BE) nem que fosse por uma abstenção. Desse modo, não só travava as pressões políticas dos aliados como obtinha da direita um aval à sua posição e, quiçá, uma plataforma para futuros entendimentos. Cálculo errado, como se viu, que obrigou António Costa a puxar da arma da demissão para encostar os adversários à parede.

Qual foi o cálculo da direita?
O PSD e o CDS, no imediato, só pensaram em captar votos dos professores. E, a médio prazo, entalar o governo e o PS com mais encargos financeiros que dificultassem a governação a António Costa, não apenas já em 2019, mas em governo próximo (confessando assim, aliás, não terem qualquer esperança de ganhar as eleições de Outubro). Virou-se contra eles o argumento da falta de “rigor orçamental” com que sempre defenderam a política de austeridade e atacaram a linha de acção do Governo.

Qual foi o cálculo dos sindicatos e da esquerda parlamentar?
Os sindicatos dos professores, mais o PCP, o PEV e o BE contavam com os votos do PSD e do CDS para obterem a aprovação do diploma a que o PS se opõe e assim derrotarem o aliado de governo e assegurarem o apoio dos professores.

Porque não foi denunciado o oportunismo da direita?
Nem os sindicatos, nem a esquerda parlamentar denunciaram o oportunismo do PSD e do CDS porque, no objectivo de conseguirem uma maioria na AR, acharam que todos os votos seriam bons viessem eles donde viessem. Não lhes convinha, pois, espantar a caça. Branquearam com isso a actuação manhosa da direita.

Exigir “coerência” à direita?
Em dada altura, quando as coisas se encaminhavam para votação no plenário da AR (a 16 de Abril), e era preciso obter aquela maioria contra o Governo, Mário Nogueira (secretário-geral da Fenprof), secundado por Jerónimo de Sousa, Heloísa Apolónia e Catarina Martins, apelava à “coerência” do PSD e do CDS na defesa da reclamação dos professores (*). “Coerência”, imagine-se, de dois partidos que apenas tinham os olhos postos nos votos dos professores e em impor uma derrota ao PS.

“Vitória” ou acordo sem princípios?
Quando em 2 de Maio a comissão de Educação da AR aprovou o acordo entre PSD, CDS, PCP, PEV e BE, Mário Nogueira baptizou de “vitória dos professores” aquilo que não passava de um acordo sem princípios de parte a parte. E mesmo depois de PSD e CDS (encurralados pelo PS e sob uma chuva de críticas vinda da direita) terem dado o dito por não dito, mesmo assim, Mário Nogueira continuou o namoro à direita, na esperança de que o plenário da AR, previsto para meados de Maio, contra todas as evidências, confirmasse a votação de 2 de Maio…
Este plenário realizou-se a 10 de Maio. PSD e CDS voltaram atrás e a proposta aprovada na comissão de Educação uma semana antes foi chumbada.

O que se salva afinal?
O PCP, o PEV e o BE contaram com o volte-face da direita para poderem manter uma aparente firmeza “de princípios”. Mas na verdade todos se encolheram diante da hipótese de demissão do Governo, como ficou patente no tom de apaziguamento com que criticaram a ameaça de António Costa. Ambos perceberam, de facto, que a demissão era para valer e que os efeitos eleitorais poderiam ser incalculáveis. A esquerda parlamentar não avaliou os efeitos políticos da sua aliança espúria com o PSD e o CDS. Lição número um: a reclamação dos professores ficou pelo caminho. Lição número dois: a esquerda, que empenhou os princípios em nome dos efeitos práticos, no final não salvou nem uns nem outros.

Porquê silenciar as fraquezas?
A esquerda parlamentar fez da luta dos professores uma bandeira da sua acção por melhores condições de vida para os trabalhadores. Justo. Mas silenciou em todo este processo a fraqueza das lutas da massa operária e dos assalariados do sector privado. Não é a justeza da luta dos professores, ou dos demais assalariados do Estado, nem a projecção mediática que lhe é dada, que deve esconder a debilidade das lutas actuais no seu conjunto. Com este silêncio, a esquerda procurou um ganho político imediato — e, de certo modo, fácil — escondendo o facto de esta onda reivindicativa ter pés de barro, precisamente por lhe faltar a base operária e dos assalariados do capital privado.

Porquê menosprezar os casos exemplares?
Em contraste, as greves dos estivadores e dos camionistas, excepcionais no panorama dos últimos meses e anos, pouca atenção mereceram. Não se encontram nas posições da CGTP, do PCP ou do BE referências a estas lutas comparáveis com as dos professores ou dos funcionários públicos. E, no entanto, é naquelas que se pode observar maior combatividade frente ao capital privado e maior sentido de classe.

Efeito de arrasto sobre os demais trabalhadores?
Não se viu, nos largos meses já passados, que as reivindicações dos professores (como as dos funcionários ou enfermeiros) tivessem incentivado as lutas dos assalariados do sector privado. Apenas contagiaram os demais funcionários do Estado, que, muito justamente, disseram de imediato: também queremos recuperar o que perdemos. Mas como isto não se repercutiu na massa operária e assalariada dos privados, o efeito prático não é uma subida do nível geral das lutas por melhores condições de vida, mas sim um desfasamento maior entre as classes médias assalariadas e a massa operária. Não só desfasamento salarial e laboral, mas também, e isso é talvez o mais grave, desunião.

Os trabalhadores são todos iguais?
É a desigualdade real existente entre trabalhadores que dá argumentos à direita e ao PS para travarem as exigências dos professores invocando, de modo cínico, a “injustiça” de deixar para trás os demais trabalhadores. Mas este cinismo não pode ser derrotado — e os seus efeitos sobre a massa assalariada do capital privado não podem ser evitados — sem que a esquerda ponha a nu aquela diferença e denuncie a direita pelo favorecimento que está sempre pronta a fazer das classes médias (onde capta votos úteis) em detrimento da massa operária e dos assalariados pobres que, na óptica da burguesia, têm de ser os primeiros a pagar a crise.

Trabalhadores contra trabalhadores?
Não basta, pois, denunciar os propósitos da direita e do PS de “pôr trabalhadores contra trabalhadores”. A direita invoca a “igualdade” para rebaixar, nivelar por baixo e esmagar as lutas que se destacam, especialmente as que ferem o capital. A esquerda só responde a isto mostrando que as desigualdades entre as classes trabalhadoras existem de facto e têm de ser combatidas — elevando o nível geral das lutas, coordenando-as e, sobretudo, incentivando os exemplos de acção vindos dos sectores mais explorados.

Como a experiência tem mostrado, nada de essencial mudará no país sem que a classe operária e os assalariados mais pobres entrem na luta reivindicativa e política com os seus objectivos próprios. Nada de essencial e, por vezes, nem sequer nada de alcance mais limitado — como se vê pelo desfecho da luta dos professores.

(*) Nomeadamente, declarações proferidas aquando da manifestação dos professores de 23 de Março.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 10/5/2019, 23:28

Ao repararmos nas recentes batalhas que alguns sectores do mundo do trabalho têm travado contra o governo e capital, constata-se que essas lutas se têm demarcado das direções sindicais oficiais, isto é, comprometidas com o status quo que orientam essas lutas até um determinado limite. Por isso a radicalização de certos sectores atemorizaram não só algiuns sindicatos como a própria classe dominante que se preocupou com o rumo desta nova orientação. Daí, os rótulos de movimentos populistas, extrema direita, demagogicos e irrealistas.Nada mais falso, o movimento social desencadeado ultrapassou fronteiras na Europa e as novas geraçôes acordam para a verdadeira realidade que as cerca. O Mundo está em turbilhão e a social-social democracia falida irreversivelmente, enquanto a esquerda anti-monopolista ensaia uma nova estratégia. Esperemos que a próxim ,eleição para a Europa traga novidades o que me parece que não acontecer, mas de qualquer maneira nas legislativas elas poderão surgir com alguma força capaz de a tornar indomável.

leonel clérigo 15/5/2019, 13:08

ABSTRACÇÕES…
É minha convicção que, desde há muito, a nossa Sociedade tem um problema grave por resolver: a “incapacidade”, até ao presente, em se tornar numa “sociedade desenvolvida”. E se a Sociedade Lusa é uma sociedade dominada pelo capitalismo - ninguém o duvida… - a responsabilidade dessa “incapacidade” só - logicamente - pode ser assacada ao Capitalismo. Ou seja: o Capitalismo já deu provas suficientes no tempo que não tem solução para este grave problema que afecta Pais. O resto, é puro masoquismo da nossa gente.
Também não fico de “boca aberta” quando oiço os ilustres defensores do nosso Capitalismo continuarem a apostar “no cavalo errado” e, “teimosamente”, indiferentes aos resultados que estão à vista de todos nós: o Subdesenvolvimento não nos larga e o Senhor Bispo do Porto não teve dúvidas em confirmar esta questão grave que nos afecta a todos.
Contudo, o CDS, o PSD e o PS - e não só…-, sempre tão “atentos” ao discurso da Igreja, fizeram deste “ouvidos de mercador”. E agora, que as eleições estão na rua, vêm com as tretas "prioritárias" do costume: os incêndios, a corrupção, as demoras nas urgências hospitalares… e que tal como o Desenvolvimento do País, parecem ser temas que nada têm a ver com todos eles: estes senhores chegaram agora todos duma Galáxia longínqua.
Também o Senhor Presidente da República veio recordar-nos agora aquela questão muito badalada no velho e gasto discurso “abstracto” dos defensores do Capitalismo: são os Empresários (Capitalistas) que criam “riqueza”, o que além de ser incorrecto - os empresários não criam riqueza, “Valor”… - faz-me lembrar aquela anedota que ouvi no Alentejo:
“Maria, porque é que pintas os be(i)ços?
É para ficar mais bonita…
Então porque é que nã(o) ficas?…
Transposta esta rábula alentejana para os nossos magníficos Empresários Capitalistas - e seus “incondicionais” defensores -, talvez possamos ver melhor a coisa quando limpa da eterna “poeira”:
“Porque é que os nossos brilhantes Empresários capitalistas se esforçam tanto e o suor abunda…?
É para criarem riqueza e o País ficar Desenvolvido…
Então porque é que o País nã(o) fica?…”


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