Muita discórdia, são os nossos votos

Urbano de Campos — 11 Abril 2019

Os 70 anos da NATO foram comemorados em ambiente de azedume: os EUA de Trump a desvalorizarem a data e os europeus a darem a entender que não será por eles que a aliança se irá desfazer. Trump disse aos europeus que não tinha lugar na agenda para a festa de anos e o secretário-geral da aliança, o dinamarquês Stoltenberg, foi ao Congresso norte-americano fazer uma discursata sobre os méritos e as vantagens da “amizade” transatlântica.

Os observadores mais lúcidos, entre os quais alguns comentadores políticos norte-americanos, fazem ver que o propósito do governo de Trump, ao desvalorizar os parceiros europeus da NATO, põe de facto em causa velhas alianças e abala a estabilidade da organização. Mas que nada disso significa desleixar a hegemonia militar e as ambições de domínio mundial por parte dos EUA.

De facto, numa mesma jogada, os EUA conseguem coagir os europeus a fazer-lhes novas concessões (nomeadamente, nas despesas militares) e avançam na conquista de novos aliados, quiçá mais fiéis, por esse mundo fora. Os sinais dados por Trump ao Brasil e à Colômbia para integrarem a NATO, abarcando o Atlântico Sul, e os propósitos, vindos de presidências anteriores, de a estender à África são disto exemplos.

Os europeus mais graúdos, como a França e a Alemanha, já perceberam duas coisas: uma é que não podem confiar em Trump, outra é que, mesmo sem Trump, não podem confiar nos EUA. A mudança no imperialismo norte-americano é efectiva e vai para lá das tontices de Trump. Foi o que a chanceler Merkel significou ao dizer (Maio 2018) que a Europa já não pode contar com os EUA para a proteger e que deve tomar o seu destino em mãos. Evidentemente, a afirmação vale não apenas para as questões da NATO, mas também para toda a competição económica e de domínio territorial de uma e outra potência.

Inevitável conflito de interesses

A União Europeia cresceu como uma potência imperialista concorrente do imperialismo norte-americano. Vai-se tornando claro, portanto, que a cooperação entre uma e outro, por se tratar de uma cooperação entre mafiosos, só se manterá enquanto os interesses de ambos possam ser defendidos em aliança, mesmo desigualmente. Quando tal não puder acontecer mais, torna-se também claro que cada um tratará de si.

É por anteverem esta realidade que os norte-americanos exercem pressões constantes sobre os europeus, visando sobretudo as maiores potências — França e Alemanha. E fazem-no, não apenas no que respeita à NATO, mas também em relação à própria UE, que a via truculenta inaugurada por Trump colocou debaixo de fogo. A exigência de maiores verbas para a Aliança, o apoio sem rodeios ao Brexit e o convite descarado a Macron para que a França abandone também a UE (*) são passos de uma mesma política.

Não admira que, em resposta, a UE torne a vida difícil ao Reino Unido e os europeus da NATO resistam a despender verbas colossais numa organização em que os EUA é que mandam.

A evolução que se está a dar nada tem de linear. Mas, por exemplo, o entendimento da Alemanha com a Rússia para fornecimento de gás (que os EUA verberaram como uma traição) e a recusa da UE em rasgar o acordo com o Irão (ao lado da Rússia e da China) são sinais de divergências de interesses que colocam os imperialismos europeu e norte-americano em terrenos diferentes e com aliados diferentes.

Vassalagem

Mas enquanto as forças armadas europeias que a França e a Alemanha ambicionam criar não saírem do papel, a Aliança Atlântica continua a ser útil ao imperialismo europeu. Vá então de ceder aos protestos de Trump (e de Obama e de tantos outros anteriores presidentes, não esquecer) e pagar mais uns quantos milhões para tropas, armamento e operações militares um pouco por todo o mundo.

Foi este tipo de vassalagem que o secretário-geral da NATO foi prestar diante do Congresso dos EUA. A hipocrisia do homem foi completa. Esqueceu todas as ameaças e diatribes de Trump para poder reduzir tudo a simples diferenças de “pontos de vista”. Elogiou mesmo a pressão de Trump para que os europeus pagassem mais. Procurou, com algum ridículo, mostrar como a Aliança tem sido útil aos EUA, como se eles não soubessem. Listou as inúmeras operações militares em que os europeus se empenharam para ajudar os norte-americanos, como no Iraque ou no Afeganistão, em guerras que os EUA promoveram por interesse próprio.

Por fim, tirou da cartola o argumento definitivo com que talvez pense demover Trump da ideia de que a organização está “obsoleta”: a NATO, vincou Stoltenberg, volta a ter plena justificação, mesmo depois de terminada a guerra-fria, diante da “nova ameaça” representada pela Rússia de Putin. Mais uma vez, passados 30 anos: “Vêm aí os russos!”

A inversão completa de lógica é evidente. Muito mais do que conter o “avanço soviético” na sequência da Segunda Grande Guerra, a NATO traduziu o domínio militar dos EUA sobre a Europa e foi o garante da aplicação do Plano Marshall e do retorno em boa ordem aos EUA dos lucros que ele proporcionou ao imperialismo norte-americano.

O reforço militar e a actual acção determinada dos russos, nas suas fronteiras e fora de portas (Ucrânia, Crimeia, Geórgia, Síria e mesmo Venezuela e Turquia), é o resultado inevitável da permanência da NATO para cá da guerra-fria e da sua contínua expansão até às fronteiras europeias da Rússia, ao Cáucaso e à Ásia Central. Da mesma maneira que o reforço militar chinês e a sua aliança com a Rússia e outros países asiáticos, no âmbito da Organização para a Cooperação de Xangai, visam fazer frente ao gigantesco poderio norte-americano, de que a NATO é uma peça-chave.

Debaixo da máscara da “paz” e da “defesa”

Todo aquele discurso sobre o novo “perigo russo” procura pintar com as cores da paz e vestir com a roupagem da mera defesa uma organização planeada para exercer ameaças militares e promover guerras sempre que tal é do interesse das potências imperialistas que a comandam.

Assim se escondem da opinião pública realidades muito cruas. Desde logo, as colossais verbas gastas em armamento e operações militares. Depois, as intervenções militares que têm matado milhares de pessoas e reduzido países inteiros a escombros. Finalmente, as operações “humanitárias” e de “reconstrução” que alimentam negócios privados, com lucros garantidos e fabulosos, dos países agressores.

É para isto que os povos europeus e norte-americano pagam. O fim da NATO não está à vista, mas ele será, em todos os sentidos, uma medida de saneamento que o mundo agradecerá. Só se pode, portanto, desejar que os desentendimentos entre os imperialistas europeus e norte-americanos se agravem, porque, como alguém disse, quando dois gatunos entram em briga quem ganha são as pessoas honestas.


(*) De acordo com o Washington Post, numa reunião privada na Casa Branca, em Abril de 2018, Trump sugeriu a Macron que a França saísse da UE, prometendo um acordo de comércio bilateral com os EUA melhor do que aquele que existe agora entre os EUA e a UE. A mesma promessa foi feita há dias por John Bolton (conselheiro nacional de segurança de Trump) ao Reino Unido, incentivando-o a sair da UE mesmo sem qualquer acordo com os ainda parceiros europeus (SkyNews, 30 Março).


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