Porque é que o Estado “falha”?

Urbano de Campos — 1 Janeiro 2019

De há um ano para cá, a direita — com o concurso do presidente da República — tem vindo a cavalgar as tragédias nacionais com lamúrias de mau gosto e com a acusação de que o Estado “falhou”. Motivos, de facto, não faltam, desde os incêndios de 2017 até ao recente desabamento da pedreira de Borba ou à queda do helicóptero do INEM. Chegou mesmo a evocar-se o colapso da ponte de Entre-os-Rios (há quase 20 anos!) e houve mesmo quem, para apimentar o assunto, levantasse alarme acerca da ponte 25 de Abril.

O objectivo da direita não é, obviamente, maldizer o Estado, mas sim atingir o governo actual enquanto “gestor de serviço”, para daí tirar benefícios partidários. Nem esse jogo hipócrita, nem a aparente contrição do PR e do próprio primeiro-ministro, sobre as “falhas” do Estado tocam o fundo da questão — pelo contrário, até o mascaram. Dispensam-se, portanto, as críticas de uns e as autocríticas de outros, frutos exclusivos das guerras partidárias.

A incúria do Estado no que respeita ao bem-estar e à segurança dos cidadãos é evidente. Mas ela não se mostra apenas nas tragédias sonantes. É um facto de todos os dias, que se manifesta na degradação da Saúde e da Segurança Social, na desgraça dos transportes públicos, nas eternas carências de habitação, na parcialidade da Justiça, na violência policial selectiva, no abandono dos territórios interiores que não rendem — enfim, no sem-número de casos em que se revela a protecção do Estado aos poderosos, à propriedade privada, ao investimento lucrativo, aos ricos, ao patronato. E em que a canalização de verbas (chamadas públicas!) beneficia, portanto, o poder e os interesses das classes dominantes, a começar pela finança.

Mas, para não diluir a questão, porque caem as pontes e as estradas, porque faltam a prevenção e os meios de combate a incêndios, etc.? Porque não são afinal dotados os serviços ditos públicos dos meios que deveriam ser considerados indispensáveis?
O mito de que o Estado é uma instituição que provê o bem geral cai por terra nestas ocasiões. Ao longo de anos e anos, todas as infraestruturas e serviços de utilidade geral, quase sem excepção, têm vindo a ser abandonados a uma degradação de efeitos criminosos, sem que os diversos órgãos do Estado, desde as autarquias à administração central, tivessem manifestado qualquer empenho sério em os reparar ou renovar.

Este processo não é apenas português. Viu-se em Itália com a queda recente da ponte de Génova e verifica-se mesmo nos EUA, em que as infraestruturas do país envelheceram à beira do colapso, não obstante se tratar da maior economia capitalista do mundo. As tragédias do furacão Katrina em Nova Orleães, em 2005, repetida em Porto Rico com o furacão Maria, em 2017, são dos casos mais gritantes. Juntem-se os desastres nucleares de Three Miles Island (EUA, 1979), Chernobyl (URSS, 1986) e Fukushima (Japão, 2011), para não falar das tragédias diárias do “terceiro mundo”.

O desleixo dos poderes públicos tem uma razão de ser que está para lá das opções políticas do momento, ou de qualquer partido. O Estado (ou o seu equivalente em épocas históricas passadas) foi desde sempre a entidade que promoveu a criação das principais infraestruturas — não com o objectivo de servir o interesse público, geral, de todas as classes sociais, mas na qualidade de representante dos interesses das classes dominantes. Em função das necessidades do conjunto do capital, hoje, cabe-lhe criar as condições de existência e de reprodução dos negócios.
Ora, o investimento em infraestruturas novas ou mesmo na manutenção das existentes é muito caro. Os grandes volumes de capital para isso necessários são amortizáveis apenas a longo prazo. Em termos capitalistas, é preciso, portanto, que um crescimento económico contínuo sustente tal investimento e o justifique para um horizonte de tempo alargado.

É isso que não sucede. A estagnação a que hoje se assiste do processo de acumulação de capital cria, na sociedade burguesa, uma dificuldade insuperável: para quê despender grandes volumes de capital em infraestruturas se esse investimento não for reprodutível? Não é, pois, porque não haja “dinheiro” suficiente. O que não falta é dinheiro líquido, meios financeiros, capital fictício, absolutamente improdutivos e parasitários. Simplesmente, os possuidores (privados) desse capital não estão na disposição de o aplicar sem garantia de retorno, ou seja, apenas para benefício dos negócios de outros possuidores de capitais. Preferem obviamente captar a sua quota-parte de mais-valias através da especulação financeira, ou de negócios escuros, por exemplo.

A chamada “incúria” dos poderes públicos traduz, afinal, a sua dependência absoluta dos interesses do capital no seu conjunto, como sempre aconteceu — com o facto novo, agora, de se ter entrado numa época em que a estagnação económica desaconselha o investimento produtivo e a longo prazo, e induz a busca de lucro a curto prazo. Há inclusive uma disposição bem precisa da União Europeia que reflecte esta situação: a limitação do défice dos Estados-membros ao tecto dos 3%, regra que impede qualquer gasto público que não seja o estritamente necessário para garantir a reprodução do capital existente.

Se os benefícios colectivos, para a sociedade em geral, da criação de infraestruturas e serviços públicos foram, desde sempre, um subproduto dos interesses privados (das classes dominantes), hoje podemos ter a certeza, nesta época de declínio do capital, de que, mesmo esses subprodutos, cada vez menos verão a luz do dia. As estradas de Borba continuarão a cair e os furacões a devastar casas e vidas. O Estado “falha” porque o próprio mundo capitalista entrou naquilo que, em linguagem médica, se chama falência orgânica.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgoncalves 2/1/2019, 19:48

A propósito do investimento público e da dívida cito uma breve passagem do artigo de Alfredo Barroso publicado no último dia do ano passado. Na manhã de 13 de Outubro de 1307, o rei de França tomou para si a guarda dos bens da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo. O Grāo mestre da ordem, ex banqueiro do monarca e de todos os príncipes da Europa, ardeu na fogueira. Foi uma das mais radicais reestruturaçőes de sempre de uma dívida pública. Os portugueses no que respeita às finanças são ainda hoje dominados pelos fantasmas de Salazar, Cavaco, Gaspar e Centeno. Continuam a pensar que a deferência que o Estado deve ter pelos seus credores decorre de uma obrigaçáo moral e de um sentido de honra que deve prevalecer sobre os compromissos contraídos pelo Estado perante os cidadãos... Conclusao, nós estamos atrasados cerca de 700 anos em relaçáo a Filipe o belo, rei de frança e ainda por cima náo tinham nascido nessa época Lenine nem Marx.

leonel clérigo 5/1/2019, 13:22

A VELHA HISTÓRIA DA DÍVIDA "PÚBLICA" E DO ENRIQUECIMENTO "PRIVADO"
Há muito que faz falta começar a "levantar" questões como esta que colocou acima AG.
E talvez por isso, ao se lhe "recordar" como Filipe o Belo "tratou" o seu Banqueiro, Mário Draghi vai já "pôr-se a milhas..."


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