Vão os EUA abandonar a lógica de guerra?

Manuel Raposo — 29 Abril 2018

A forma amistosa como parece ter decorrido a cimeira entre os chefes de estado coreanos, e a antecipação deste encontro em relação à prevista reunião de Donald Trump com Kim Jong-Un, mostram a intenção dos líderes coreanos de dizerem: quem decide o destino das Coreias são os coreanos. Mas não é certamente esse o pensamento do imperialismo norte-americano, que tudo fará para não perder o domínio que exerce há décadas sobre a Coreia do Sul e toda aquela parte do Pacífico.

Um primeiro facto a assinalar é este: o actual presidente sul-coreano foi eleito expressando o propósito de conseguir a paz com a Coreia do Norte. Contrariava assim a política da anterior presidente, uma radical pró-americana — que, de resto, acabou destituída, sob pressão de grandes movimentos de massas, e condenada a 24 anos de cadeia por corrupção e abuso de poder. O imenso poderio militar imperialista instalado na Coreia do Sul viu-se assim desfalcado do ponto de vista político.

Um segundo aspecto, diz-nos que sempre interessou aos EUA a situação de nem guerra nem paz entre as Coreias que perdura há 65 anos. Tem sido esta a forma de o imperialismo justificar a efectiva ocupação da Coreia do Sul com dezenas de milhares de tropas e com um arsenal, terrestre e marítimo, de grande envergadura. O pretexto são as “ameaças” norte-coreanas, mas a razão concreta é o cerco militar sobretudo à China, e também à Rússia.

Um eventual tratado de paz, a possibilidade de cooperação económica, o estabelecimento de laços de confiança entre as duas Coreias (indicações que saíram da cimeira) alterariam os dados do jogo, nomeadamente retirando justificação à presença militar norte-americana na zona. Com isso poderiam também ganhar alento as reivindicações populares no Japão (de longa data) para que as bases militares dos EUA sejam encerradas. Acresce ainda que uma cooperação económica entre as duas Coreias abriria campo sobretudo ao capital sul-coreano e japonês, bem como ao capital chinês, deixando muito possivelmente em lugar secundário os interesses do capitalismo ianque.

As ameaças de Trump, ainda há poucos meses, de lançar “fogo e fúria” sobre a Coreia do Norte e de a “destruir” definem o criminoso que se esconde na pele do presidente norte-americano, mas podem hoje ser vistas como um sinal de impotência política perante o rumo dos acontecimentos. Nem a Coreia do Sul nem o Japão, por razões óbvias, queriam uma guerra no seu território ou à porta de casa. E quando a China disse claramente, no auge das barbaridades de Trump, que não haveria guerra nenhuma — estava a dar um aviso aos EUA, não à Coreia do Norte.

A aposta dos norte-coreanos em dotar-se de um arsenal nuclear produziu, portanto, os efeitos políticos esperados. Não por os colocar a par do poderio dos EUA, longe disso, mas por produzir o efeito dissuasor suficiente para que o imperialismo não pudesse fazer com eles o que fez com o Iraque ou a Líbia. Portanto, jogou bem Kim Jong-Un, não só do ponto de vista das armas como do ponto de vista político — por saber que nenhuma das potências da zona queria o desencadear de uma guerra. Foi esta aliás a principal lição da Guerra Fria — só o medo retrai o imperialismo.

O encontro de Trump com Kim Jong-Un arrisca-se, assim, a não ter conteúdo. O que vão eles decidir agora? Kim leva na mão o entendimento com a Coreia do Sul, mais o apoio da China e da Rússia e do resto do mundo que não partilha das ambições imperialistas. Trump só leva como argumento… o argumento de sempre dos EUA: a presença militar, de que não abdicará a qualquer preço.

Um sinal do que pode ser a postura de Trump está no facto de os meios de informação ocidentais falarem insistentemente na desnuclearização da Coreia do Norte, quando a cimeira falou na desnuclearização da península coreana — significando isto, na prática, a retirada dos EUA da Coreia do Sul e dos mares próximos; ou, pelo menos, a declaração de que respeitariam a soberania das duas Coreias e a paz na zona. Ora, os manejos do imperialismo têm ido sempre noutro sentido: o de isolar e humilhar a República Popular da Coreia e manter a pata sobre a Coreia do Sul.

Outro sinal são as notícias de bastidores que apontam o novel conselheiro de segurança de Trump (o cripto-nazi John Bolton, que já “aconselhara” Bush a atacar o Iraque) como adepto da punição militar, dita “cirúrgica”. O encontro a curto prazo de Trump com Kim — decidido, estranhamente, tão à pressa, e em cima da demissão súbita do chefe da diplomacia Tillerson, dito mais “moderado”— serviria, então, apenas para os EUA queimarem etapas e regressarem rapidamente à lógica da guerra.

Só os factos poderão dar certezas. Mas nada pode ser posto de lado. Basta que Trump, no previsto encontro com Kim, leve na manga imposições inaceitáveis para a Coreia do Norte.

Não é pois de excluir que, uma vez mais, os EUA sabotem o entendimento entre os coreanos. Apesar de mais difícil agora, dado o ponto a que as coisas chegaram na cimeira do dia 27, não seria inédito. Mas, mesmo que o façam, serão sempre eles os responsáveis pelo clima de guerra, agora de forma mais evidente. E, de qualquer modo, não deixarão de averbar uma derrota política.


Comentários dos leitores

leonel clérigo 29/4/2018, 18:29

A CIÊNCIA da GUERRA
Um bom texto este o de MR!
Contudo, gostaria de colocar aqui um par de dúvidas em contra-mão.
Duas questões:
1 - O que pode levar hoje o Imperialismo a “fazer a guerra total”?
2 - Que mudou hoje profundamente na tecnologia do “fazer a guerra”?
Estes dois pontos, em minha opinião, deveriam ser conjugados, mas admito não “ter unhas para isso”. Além disso, falta-me informação, sobretudo no que se refere ao Ponto 2.
Alguém disse que “sem informação, não há direito à palavra” e estou de acordo. Contudo, vou aqui desrespeitar o conselho. Contradições da vida...
1 - A primeira questão liga-se ao entendimento que se pode ter sobre - e face à Natureza do Capitalismo na sua fase Imperialista/Monopolista - quando acabará ele por dizer: “Alto aí! Estão-me a pisar os calos!” Os “calos” são, evidentemente, o seu domínio dos “Mercados”, das “Matérias-primas” e dos diferentes “Capitais exportados” em grande parte do Planeta sob sua influência: o dito “Ocidente alargado”. São estes que, no limite, o farão carregar no “Botão” que Donald Trump assegura ter um muito “maior” que o de Kim Jong-Un. Até lá, tudo continuará a ser uma questão “local” e não “global”: umas “bombitas” e tal como dizem os analistas da Goldman Sachs para os “medicamentos”, óptimas para os "negócios" e para os “lucros” a longo prazo…
Que se pode retirar daqui, se estas “premissas” fazem sentido?
O Imperialismo “ocidental” parece considerar que os tempos que correm” têm “dificuldades”, mas ”não levou ainda nenhum sério “trambolhão” que o leve a olhar fixamente para o “botão” vermelho: perdeu na Síria e perde agora na Coreia, mas ganhou na Ucrânia e prepara-se agora - se Deus quiser…- para a “Bielorússia”. A Polónia é um bom “parque de estacionamento”, ou não fosse a Pátria de João Paulo II.
É certo que o “esgotamento” do seu Modo de Produção - que o colapso do Neoliberalismo vem evidenciando sem solução à vista incluindo o “abstracto” 2020 - é sintoma preocupante mas, para o “Pragmatismo filosófico” de tradição estadunidense, “enquanto há vida há esperança” e “quem vier atrás, que feche a porta”. Aliás, aqui para nós que ninguém nos ouve, o Srº Donald Trump é um “excelente homem de negócios” mas não tem “pinta” de ser um Presidente adequado para iniciar uma guerra de “alto gabarito”. Quando ela se aproximar, todo o Mundo “saberá” disso.
Conclusão: aposto que o resultado e face à conjuntura, não é alarmante e o “botão”, vai ter que esperar. Como diz MR: nesta situação, “serão sempre - os USA - os responsáveis pelo clima de guerra”, coisa que não é lá muito atractiva para a sua incondicional frente "democrática".
2 - Quanto ao segundo ponto, ele poderá ajudar a completar o cenário.
O Srº Elon Musk, fundador da “Tesla e da Space X” e que não é parvo nenhum nem de hoje nem de ontem - um apaixonado do Marte “tricolor” de Kim Stanley Robinson -, aponta as “máquinas inteligentes” como o inimigo principal, dado que - diz ele - a “competição pela superioridade em inteligência artificial a nível nacional” será, muito possivelmente, o que irá ser a causa da futura Guerra Mundial. Ou seja: a guerra vem mudando aceleradamente de “natureza” a todos os níveis e, por isso mesmo, “sinto” que não podemos estar agarrados a “pensamentos” passados, que nos levem a errar o alvo. Exagerando: se os Açores foram para a sucata é porque já não interessam “batalhas do Atlântico”. Serão, talvez, “velharias” que nos podem levar a raciocínios desadequados e que interessam ser corrigidos e aprofundados por “quem estuda e sabe”…ou é visita do “segredo dos Deuses”.


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