A linguagem politicamente correcta e a Tese XI sobre Feuerbach

António Louçã — 21 Novembro 2017

politcorrecto_flipA mania obsessiva da linguagem politicamente correcta encobre geralmente uma negação da dialéctica e daquele preceito do “Manifesto” que recomendava assumir o interesse de conjunto da massa assalariada, e não apenas o interesse corporativo de uma das suas fracções.
Assim, os nacionalistas latino-americanos costumam enfurecer-se quando alguém fala de cidadãos dos Estados Unidos da América como “americanos”. Têm, claro, alguma razão, porque “americanos” são todos — também os sul- e os centro-americanos. Mas a alternativa que propõem (chamar aos cidadãos dos EUA “norte-americanos”) também tem inconvenientes: quando falamos de crimes de guerra norte-americanos, com razão podem sentir-se ofendidos os canadianos ou os mexicanos.

Do mesmo modo, os nacionalistas bascos e catalães fizeram durante anos campanha contra a simples utilização da palavra “Espanha” e conseguiram impor numa certa esquerda a obrigatoriedade de dizer sempre “Estado espanhol”. Com isso se supõe que fica mais sublinhado o carácter multinacional do Estado em causa. Mas, ao fazer-se com a expressão alguma justiça às nacionalidades oprimidas pelo centralismo madrileno, comete-se a injustiça de apenas negar carácter de Estado-nação àquele que directamente oprime bascos e catalães, ou eventualmente também galegos. E a Turquia não deveria ser doravante designada como “Estado turco”, a Rússia como “Estado russo”? No limite, que fazer com os Estados latino-americanos que segregam as suas populações indígenas? E que fazer mesmo com a França, que igualmente inclui território basco?

Do mesmo modo, um certo feminismo instaura a Marx e Engels um processo de intenções por, alegadamente, falarem na “exploração do homem pelo homem”. Um pouco mais de atenção permitir-lhe-ia descobrir aqui um mal-entendido, atribuível sobretudo às traduções francesas dos clássicos marxistas. Com efeito, os textos marxianos não usam a palavra Mann (homem, por oposição a mulher) e sim a palavra Mensch, que a muito machista língua francesa traduziu por “homem”. Ora, a palavra Mensch (“ser humano”) é gramaticalmente masculina mas semanticamente neutra, tal como, em português, “pessoa” é gramaticalmente feminina mas semanticamente neutra.

A alternativa de escrever o plural dos substantivos em género duplo — em português com a moderníssima terminação em @s, em alemão com Innen, em francês com é(e)s, noutras línguas com uma complicada barra — tem o inconveniente de tornar todos os textos impraticáveis para uma leitura em voz alta. Ou, se forem lidos em voz alta, sê-lo-ão sempre na forma feminina, que exclui o masculino. Ou, na língua francesa, sê-lo-ão perdendo o engenhoso matiz da terminação.

Para além do seu exclusivismo sectário, esta abordagem é também elitista. As revoluções burguesas tinham-se traduzido em trazer para o domínio da escrita uma cultura viva que até aí se confinava à oralidade. Prenunciavam assim a grande vaga alfabetizadora do século XX. Enquanto os padres católicos continuavam a usar o latim nas suas missas, e nas únicas traduções existentes da Bíblia, Lutero meteu ombros a elaborar a primeira versão da Bíblia na língua alemã de todos os dias. E, como não queria elaborá-la apenas no dialecto que estivesse mais à mão, deu forma escrita a uma versão padronizada do alemão. Desse modo dava também o primeiro passo para o cumprimento da tarefa burguesa da unificação nacional.

A criação de uma linguagem escrita impossível de traduzir foneticamente significa voltar à separação estanque da Idade Média: de um lado, uma oralidade bárbara e analfabeta, do outro uma escrita em línguas mortas. Teremos, assim, os tratos de polé que dá entre nós à gramática de Camões uma legião de locutores (e locutoras) do audiovisual, vagamente alfabetizada na troca de sms; e teremos, do outro, a escrita esterilizada e politicamente correcta que ninguém fala.

Digamos, portanto, “norte-americanos”, “Estado espanhol”, “trabalhadores e trabalhadoras ” — sempre que possível. Mas não nos iludamos, porque a língua é apenas um instrumento para nos fazermos entender. Não há maneira de fazer dela um exemplo de perfeição terrena. Muitas vezes a escolha de uma palavra, de uma expressão ou de uma terminação é apenas a escolha de um mal menor, que ganha sentido no contexto e o perde inteiramente fora dele. Até agora os filósofos (e as filósofas) ocuparam-se em mudar a linguagem — mas trata-se de mudar o mundo.


Comentários dos leitores

afonsomanuelgonçalves 22/11/2017, 14:09

Ensina-nos a gramática portuguesa e a filologia que muitos substantivos que se usam nesta língua são substantivos invariáveis em género e por vezes, também, em número. Por exemplo; quando pronuncio a palavra «estudante» não sei se refere ao sexo feminino se ao sexo masculino. O mesmo acontece com a palavra presidente. Quanto ao termo juiz, que também alguns anos era invariável, com o correr dos tempos, sofreu uma alteração: juiz para os homens e juíza para as mulheres. Como tudo o resto a semântica está sujeita a obedecer manifestações do tempo. Contudo, a identidade do género tornou-se uma exigência nos nossos tempos que extrapola a gramática, a filologia, a semiótica e a semântica. Julgo que nos nossos dias Lindley Cintra nos faz alguma falta.

leonel clérigo 23/11/2017, 14:56

Se não estou errado, AL parece querer anotar aqui a necessidade duma maior precisão na linguagem. Julgo pretender chamar ele a atenção para a "diferença" entre uma linguagem “imprecisa” - com “cedências” ao “senso comum” e ao “politicamente correcto” - e uma linguagem que procura ser “precisa”, digamos, mais “cientificamente” concreta. E se é certo isto que ele julga, há aqui uma boa dose de razão: a complexa realidade social - ou outra - exige uma “linguagem complexa” - mais precisa - e que o senso comum, sem razão, apelida depreciativamente de “cara”, ou de “palavreado de Domingo”.
Quando AL refere, por exemplo, o facto de os EUA serem ainda bastas vezes designados de “simplesmente" América, é isso, de facto, um “abuso” e, no fundo, uma forma de subtil de "contrabando ideológico": americanos - em termos geográficos e históricos - são todos os que habitam as Américas Norte, Centro e Sul. Mas muito provavelmente, foi o “peso” económico, politico e militar mais o seu cobiçado “momento de ouro” do “American way of life” (cultural), que provocou essa abusiva identificação de sabor imperialista - assim como o é o “domínio” imperialista do “inglês” em vez do “Esperanto”, o Chinês, Francês, Português… tal como foi o Latim no tempo do Império Romano.
Também associado a isto, está igualmente o “peso” do bloqueio “desenvolvimentista” dos EUA à América Latina desde o seu aparecimento como Nação Imperialista, impondo-lhe a condição de “subdesenvolvida” - e por isso sem “importância” no continente americano - através da “aliança dependente” das classes dominantes “rentistas” da América Latina com a classe dominante industrial/financeira imperialista dos EUA.
Estas questões que A. Louça levanta - como outras - só na aparência podem ser julgadas “trocos”. E parecem pôr em cima da mesa uma outra: não seria o caso de o MV pensar em “reforçar” e “dinamizar” a “TRIBUNA” com vista a certas "questões de fundo", inactiva desde Julho de 2016?


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