A loucura está num sistema fautor de guerras

António Louçã — 16 Agosto 2017

trumpO presidente norte-americano respondeu ao desenvolvimento de um míssil balístico pela Coreia do Norte prometendo-lhe, em caso de novas ameaças, “fogo e fúria como o mundo nunca viu”. É uma tentação ver no alucinado inquilino da Casa Branca um perigo de Armagedão nuclear “como o mundo nunca viu”. Mas o problema tem raízes mais fundas.
Quando Donald Trump ameaça com uma hecatombe de proporções inéditas, ele está a dizer concretamente que está disposto a causar uma devastação muito superior à de Hiroshima e Nagasaki. Se não for mais uma fanfarronada trumpiana, é uma declaração de intenções genocidas, colocando na mira do Pentágono milhões de civis inocentes da Coreia do Norte, que não têm culpa de quem os governa ou deixa de governar.

Mas, para além desses milhões de norte-coreanos, ficarão imediatamente na zona de morte milhões de civis sul-coreanos e japoneses. Mesmo que o também alucinado Kim Jong-Un não tenha, afinal, capacidade para atingir os EUA, ou sequer a base militar de Guam, com toda a certeza tem capacidade para atingir os seus vizinhos mais próximos. O desprezo de Trump não é apenas pela vida da população norte-coreana, mas também pela vida de populações dos seus aliados asiáticos.

Indicador do desvario trumpiano é também a ameaça de castigar outras ameaças com a guerra nuclear. Não se trata, como em Hiroshima e Nagasaki, de uma “resposta” – em qualquer caso desproporcionada – para a iniciativa japonesa em Pearl Harbor ou para os crimes de guerra japoneses. Trata-se aqui de querer riscar do mapa um país … por “ameaças”.

Não surpreende portanto que alguns dos think tanks norte-americanos agora se afoitem a procurar soluções racionais para o que veem como amok de um doido varrido, catapultado para a Casa Branca num apagão momentâneo da democracia. Um bom exemplo é o da académica Sheila Miyoshi Jager, especialista de estudos do Extremo Oriente, num artigo publicado pelo site “Politico” (*).

Segundo Jager, toda a história da península coreana é a de sobreviver explorando as contradições entre as superpotências. No século XIX, essa táctica de dividir para sobreviver, diz-nos a autora, esteve na origem da primeira guerra sino-japonesa e da guerra russo-japonesa. Depois, prossegue, o presidente norte-americano Theodore Roosevelt achou que a melhor solução era dar luz verde ao Japão para ocupar a Coreia.

A ocupação teve várias fases e diferentes peripécias mas, com o final da Segunda Guerra Mundial, voltou a ser preciso estabelecer um compromisso entre as duas super-potências vencedoras. Dividiu-se então a península com o paralelo 38 e esperou-se por melhores tempos. Não vieram tais tempos, veio a guerra da Coreia. A fronteira temporária ficou depois do armistício, dura há mais de 60 anos e nunca chegou a ser homologada por nenhum verdadeiro acordo de paz.

Jager admite que durante algum tempo a Coreia do Norte, com apoio soviético, averbou êxitos importantes no seu labor de reconstrução – enquanto a Coreia do Sul, diga-se de passagem, vivia ininterruptamente em ditadura militar até 1988. Mas Jager sublinha também que, a partir de certa altura, a protecção norte-americana ao regime sul-coreano lhe permitiu prosperar, tornando-se um indesejável contraponto para o regime de Piong Iang, cada vez mais atrofiado e cristalizado. A reivindicação de unidade coreana, que até aí era uma reivindicação nacional do Norte, passou também a servir o propósito de acabar com uma feérica montra do capitalismo, aparentemente bem sucedida.

Segundo Jager, a estagnação económica do Norte impele-o precisamente a manter e desenvolver o seu arsenal nuclear, como forma de pressão para que os EUA retirem as tropas da Coreia do Sul – removendo assim um obstáculo decisivo à unificação da península. E a única solução razoável seria, ainda segundo esta perspectiva, aliviar as sanções e encorajar a China a desempenhar um papel promotor da recuperação económica norte-coreana, de modo a tornar obsoleta e desnecessária a campanha unificadora de Kim Jong-un. Esta recuperação, diz Jager, é viável e existem mesmo sinais de que está a despontar.

Em tudo isto apenas se esquece um “detalhe”: nem a loucura de Trump é só dele, nem o problema se resolveria removendo-o e colocando no seu lugar alguém mais razoável, nem a China seria a parceira aceitável para um putschista sensato, no dia seguinte a interditar o presidente e a colocá-lo numa camisa de forças.

As ameaças de Trump à Coreia são apenas uma proxy war, uma guerra por procuração, verbal por enquanto, mas dirigida contra a China. Essa guerra tem tido outros episódios nas provocações norte-americanas no mar do Sul da China, e encontrará sempre outros pretextos para a escalada.

O imperialismo ianque não pode continuar a tolerar uma potência que fabrica tudo mais barato, que mantém uma moeda subvalorizada e exportações imbatíveis, que condena boa parte da indústria norte-americana à inutilidade, que tem uma reserva de dólares astronómica e com ela pode comprar o que entender em qualquer parte do mundo. Esmagar essa potência seria eliminar um rival perigoso e nacionalizar uma dívida externa incomportável. O slogan trumpiano “A América primeiro” expressa a loucura de um sistema imperialista que é atraído pela guerra sem dar por isso.

(*) http://www.politico.com/magazine/story/2017/08/09/donald-trump-north-korea-history-215473?lo=ap_d1


Comentários dos leitores

afonsomanuelgonçalves 16/8/2017, 16:51

O recurso de uma potência à guerra, não me parece que seja uma atracção irresistível mas sim uma necessidade da qual é difícil fugir. Sheila Jager deduz que os E.U. não podem tolerar a existência da China tal como é actualmente, e também deduz que a Coreia do Norte uma vez mais desenvolvida deixaria a Coreia do Sul em paz, tudo isto são deduções que obviamente ainda não se verificaram e fazer futurologia em História é um exercício muito arriscado.
O que se verifica é que o problema da guerra hoje é muito mais complexo, uma vez que para além do tabuleiro de xadrês mencionado por S. Jager verifica-se que existem outros povos e outros países que podem baralhar tudo; por exemplo a Venezuela, Bolívia, Médio Oriente, Afeganistão e até quem sabe a França ou outro país europeu que não assistem passivamente à arrogância e decadência do imperialismo americano. Por isso o que importa neste momento é lutar com determinação contra o imperialismo e pormos de lado especulações que não esclarecem nada nem metem medo a ninguém.


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