Mais Alemanha na Europa

Manuel Raposo — 9 Agosto 2016

MerkelHollandeNo imediato, a saída do Reino Unido é um percalço para a UE. Sobretudo para a Alemanha, na medida em que ela é o centro, o líder e o beneficiário principal do “projecto europeu”. Mas não estamos necessariamente perante uma derrota do grande capital europeu, que se fundiu de modo irremediável — e que por isso mesmo tentou evitar o abalo previsível defendendo de forma activa a permanência, como se viu na campanha do grande capital britânico, nomeadamente do capital financeiro da City. O verdadeiro problema na agenda da grande burguesia europeia parece ser como contornar os efeitos da votação da pequena burguesia britânica.

Certamente vai haver da parte das lideranças da UE cautelas para evitar efeitos de contágio que possam reduzir o número dos agora 27. Pode até dar-se o caso de as demoradas negociações para a saída efectiva do RU serem aproveitadas para virar do avesso o resultado deste referendo. Se não através de um novo referendo que dê o dito por não dito (não foi o que sucedeu com a nega dos irlandeses ao Tratado de Lisboa em 2008?), pelo menos por meio de acordos que acatem formalmente a saída mas salvaguardem os interesses que o grande capital tem em jogo.

Não será por acaso que a sucessora de Cameron, Theresa May, que fez campanha pela permanência e perdeu, é a principal negociadora dos termos do divórcio — e que o principal defensor da saída, no partido Conservador, Boris Johnson (grande “vencedor” do referendo, portanto), foi colocado num lugar subalterno.

Para já, a palavra de ordem (a avaliar por Merkel e Hollande) é cerrar fileiras, evitar sangrias. Como? Certamente procurando consolidar o “projecto europeu” — o que só pode fazer-se através de um reforço do papel da Alemanha, por ser a potência em torno da qual todo o resto da União orbita. E também porque a UE não tem apenas disputas internas; os seus principais desafios estão na competição com as demais potências mundiais, desde os EUA à China, passando pela Rússia e o Japão.

Por uma e outra razão, a UE não pode deixar que a liderança política da sua constituição como força imperialista de âmbito mundial (é esse o “projecto”) fique dependente das veleidades democráticas dos povos ou das ambições de capitalismos menores — ou dos azares dos referendos. É o que decorre da necessidade imperiosa de concentração do capital. Para a frente e em força, será, em última análise — se outros factores não intervierem — a receita para tratar das feridas.

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Notas soltas a pretexto do Brexit (IV)
Mais EUA nas ilhas britânicas


Comentários dos leitores

leonel clérigo 10/8/2016, 10:48

Das “três notas soltas “ de Manuel Raposo - não sei se haverá mais alguma(s)…? - chamou-me a atenção a “nota 2” pelo facto de colocar - em minha modesta opinião - uma questão de importância relevante.
1 - Em Novembro de 1971, a “Iniciativas Editoriais” (EI) fez imprimir um livro - posto à venda antes do fim desse ano - com um título bem sugestivo: “Um Proletariado Explorador?”. O livro, procurava ser uma síntese da larga e acesa polémica - havida na altura em França - entre um conjunto de intelectuais franceses marxistas (hoje já não se fazem destas coisas…) Esta polémica fora despoletada pelo livro do economista marxista grego Arghiri Emmanuel, “A troca desigual”.
Vivendo em Paris depois duma vida “acidentada”, Emmanuel e sob a direcção de Charles Bettelheim, aprofunda seus estudos de Economia e elabora uma “tese” que expressa em “A troca desigual”. Esta tese, pode bem ser sintetizada por um pensamento de Marx no seu “Discurso sobre o livre-câmbio” e que Emmanuel cita logo no início da “troca desigual”: “Não nos devemos admirar que os livre-cambistas não consigam compreender como um país pode enriquecer à custa de outros, pois estes mesmos senhores também não querem compreender como, no interior de um país, uma classe pode enriquecer à custa de outra classe.”
“A troca desigual” de Emmanuel dispunha-se assim a aclarar as “leis” que levavam a este enriquecer de “um país… à custa de outros” (o imperialismo) e os “benefícios” que a sua população retirava ou melhor e mais claramente, como todas as suas classes - incluindo o proletariado - beneficiavam dessa “exploração” de “terceiros”.
2 - Escusado será referir o burburinho que a “tese” provocou no meio dos marxistas: “Um proletariado explorador?” das IE dá-nos conta disso mostrando uma boa parte de quem “entrou no barulho”. Até porque Emmanuel não a “coloca no ar” levianamente: alicerça-se num estudo profundo de economia política indo ao ponto de “espremer” a “intocável” tese de Ricardo - que até nem é dele… - das tão celebérrimas quanto falsas “vantagens comparativas”, que há quem ainda julga regular “cientificamente” as angélicas “trocas internacionais”. Por isso considero que MR fez bem em referir no seu texto “… os milhões de pessoas reduzidas assim à miséria, em países alguns deles literalmente arrasados, vêm agora, muito justamente, reivindicar dos seus exploradores europeus um mínimo de condições de vida.” E mais: Emmanuel, se fosse vivo, sorrir-se-ia talvez ao ler as palavras, bem actuais e certeiras, de MR: “O efeito político entre as populações europeias é conhecido: cresce a repulsa racista, o medo xenófobo, o receio de perder empregos e privilégios, o apoio à violência policial e militar e o sacrifício das liberdades a pretexto do terrorismo.”… “A grande maioria das classes médias e dos trabalhadores da Europa pensam hoje como a sua burguesia quer que pensem, e não deviam por isso admirar-se de serem alvo de acções de terror indiscriminado, que são o eco de uma guerra sem quartel que apoiam ou pelo menos toleram. O balofo ” discurso burguês “democrático” passou, entre nós, a estar ameaçado de viajar “pela pia abaixo”.
3 - O Proletariado europeu, arrisca hoje a afundar-se com a “sua” burguesia: triste companhia para uma morte certa de quem está minado de “doença fatal”. Basta abrir o Mapa Mundo e contar quantos estão do lado de “lá” e quantos os do lado de “cá” e, pelo que me é dado apreciar, ninguém gosta de ser “comido à dentada” ou ver o corpo desfazer-se em pedaços pelas radiações das novas “Hirochima” ou “Nagasaki”. O moderno Proletariado europeu, que logo no seu início “viu” que tinha na mão um mundo novo - mesmo antes de Keynes escrever as “Perspectivas económicas para os nossos netos” - parece tê-lo deixado esquecido em parte incerta, sobretudo quando a “evidência” se torna cada vez maior. Mas tanto pior para ele… e para todos nós e o mundo. Fica de pé uma questão: “ganhou” com a “troca” (sempre para ele desigual)? O prato de lentilhas é, ao menos, bem “confeccionado”? MR admite que não. E eu, que na “dobragem” dos anos 70 já achei plausível a tese de Emmanuel, estou com ele.

mraposo 12/8/2016, 14:32

Respondendo à interrogação de Leonel Clérigo, as Notas Soltas serão oito. Esperamos não cansar os leitores. Mas, entre publicar um texto muito longo, tocando assuntos diversos, e dividi-lo em capítulos, pareceu-nos esta a melhor escolha.
MR


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