Os valores de Abril e os valores populares revolucionários

José Borralho — 24 Abril 2014

25AEm Portugal, há 40 anos, o 25 de Abril constituiu um golpe de morte no regime fascista, e nesse desígnio esteve junta a maioria do povo português — as várias classes a quem o fascismo oprimia — a começar nas classes trabalhadoras, e na mais explorada de todas: a classe operária. Mas também as classes burguesas ansiosas de modernização do país. Foi assim, um acontecimento histórico que pareceu capaz de, momentaneamente, unir trabalhadores e patrões, as camadas populares e os burgueses; e como se sabe, esta é uma união impossível porque contém em si dois pólos opostos que se repudiam.

Os promotores do golpe militar de 25 de Abril tinham como objectivo a instauração de uma democracia burguesa, com os direitos inerentes a esse tipo de regime: o voto popular, a liberdade de expressão, de manifestação, de reunião, de organização, em suma, uma democracia burguesa à maneira ocidental, sem tocar na propriedade privada dos meios de produção, nas forças armadas, nas instituições judiciais e nas forças de segurança do antigo regime.
Festejemos hoje e sempre a morte do fascismo, do colonialismo, as portas abertas das prisões da ditadura. A Liberdade!

Estes foram os valores de Abril, com os quais se instaurou o novo regime que em 25 de Novembro haveria de ter o seu coroamento, através de outro golpe de Estado que obteve o apoio das classes médias e do grande capital. Necessariamente moldado aos interesses das classes dominantes.

Para lá do capitalismo

O processo revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril visava mais longe, certamente titubeante, mas, como em qualquer processo revolucionário, as massas puseram em acção a sua combatividade e criatividade, e surgiu o esboço de uma resposta visando um regime para lá do capitalismo.

Em resposta à sabotagem económica, nacionalizaram-se bancos, ocuparam-se empresas, ocuparam-se terras e casas, procedeu-se a um controlo operário e popular através de órgãos de base. Comissões de trabalhadores, comissões de moradores, assembleias populares, comissões de soldados e marinheiros puseram em marcha a democracia popular, a democracia nos quartéis. Os patrões sabotadores, uns foram presos, outros fugiram espavoridos.

Estes foram os valores populares e revolucionários que se assumiram para além dos ideais do 25 de Abril e dos seus valores democráticos; era a busca do socialismo, do poder popular que fugiu ao controle dos ideólogos do manso 25 de Abril.

Os valores que festejamos

Quando falamos em valores de Abril não podemos meter no mesmo saco os valores do proletariado e os valores democrático-burgueses.
São os valores populares revolucionários que festejamos e que urge fazer reviver na nossa memória colectiva.

Poderemos fazer a seguinte analogia, embora os acontecimentos tenham dimensões bem diferentes:

A Revolução Francesa foi uma revolução burguesa que depôs a monarquia e lançou as consignas que ainda perduram como conceitos chave de uma mudança de paradigma: Liberdade, Igualdade, Fraternidade assim as proclamou a burguesia nesse tempo em que ainda era progressista e rasgava o desenvolvimento social e o desenvolvimento económico para uma classe: a burguesia.

Cem anos mais tarde surgiu a Comuna de Paris, que representou um corte com o sistema burguês, e proclamou as novas ideias comunistas do proletariado, a necessidade de abolir a propriedade privada capitalista dos meios de produção, a organização do Estado em comunas, passar a igualdade à prática abolindo privilégios e tentando acabar com a antiga sociedade organizada para uma minoria exploradora. Foram radicalmente diferentes os valores defendidos pela revolução francesa e pela comuna de Paris. Uns eram os valores burgueses, os outros eram os valores do proletariado, do povo miserável que quis ter o direito à sua própria organização social.

À sua maneira, o nosso 25 de Abril (golpe de estado que se transformou numa revolução pela força posterior da participação popular), depôs o regime fascista e repôs as liberdades inerentes a uma democracia burguesa incluindo a liberdade de escolher quem vai explorar o povo com o seu aval e o seu voto, e que hoje são ainda os valores burgueses em que se alicerça a sociedade de exploração do homem pelo homem em que vivemos.

Uma necessidade histórica

Diferentes são os valores por que os trabalhadores lutaram, com o proletariado a pôr na ordem do dia a necessidade de uma nova organização social, apoiada na organização do poder popular, eliminando o capital e o seu poder, abrindo caminho ao socialismo e ao fim da exploração do homem pelo homem.

Não podemos pois confundir nunca os valores burgueses de Abril e de Novembro — tão ao gosto da pequena burguesia — com os valores populares e revolucionários que o processo revolucionário pós Abril começou a erguer e que, esses sim, permanecem actuais e uma necessidade histórica a concretizar.

O proteccionismo dos militares radicalizados pela influência das lutas populares constituiu um pára-choques ao avanço da vanguarda operária e popular. A ausência de um projecto de poder anti-capitalista, a conciliação dos reformistas com os moderados, limitados à construção de a uma democracia avançada, a ausência de uma organização partidária capaz de se assumir como pólo aglutinador das diversas correntes de esquerda e de disputar o poder, e, essencialmente, o reformismo dominante na maioria das massas, foram os entraves que a luta de classes não foi capaz de resolver. A festa ficou a meio para o proletariado; foi o capital, apoiado nas classes médias timoratas, quem retomou as rédeas de um poder que nunca chegou a pertencer ao proletariado.

Foram dois 25 de Abril: o democrático burguês e o popular revolucionário, que são afinal a expressão de interesses de classe diferentes e antagónicos.

Festejemos os valores populares e revolucionários de Abril deixando esclarecido que são outros os valores democráticos burgueses. Ousemos dizer definitivamente não ao capitalismo, correndo com o governo, a troika e a ditadura de Bruxelas. É isso que está em questão neste 25 de Abril, na certeza de que um novo Abril com todos não se repetirá. Retomar o que ficou a meio vai exigir uma revolução social.


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